Florestan Fernandes, a Escola do MST e o jardim cercado da academia

Por Silvia Beatriz Adoue

“Eu quero ser o biscoito fino que um dia o povo há de comer”.
Oswald de Andrade

Quando Lula, após ter vencido o segundo turno das eleições, no discurso da avenida Paulista lembrou de tantos intelectuais que participaram da construção do PT e “esqueceu” de Florestan Fernandes, eu, postada de frente para o palco, não achei aquilo uma injustiça, mas um sinal. Após uma década de progressivo afastamento orgânico dos movimentos sociais, que começou com a medida aparentemente administrativa de dissolução dos núcleos de base, e de uma seqüência de abandonos programáticos tendentes a priorizar a atividade política eleitoral em detrimento da organização popular, o PT deixou de ser uma expressão das lutas para ser expressão daquilo que Florestan chamava de “democracia radical”. Às vezes, nem isso.

Florestan Fernandes militou dentro do PT pelo programa socialista. Em muitas oportunidades falava da sua aspiração a ser “intelectual orgânico” sob essa bandeira. A sua obra de maturidade, A revolução burguesa no Brasil (1975), atesta essa vontade. Nessa aspiração confluíam sua história familiar e sua trajetória intelectual.

Lembro que, numa das primeiras reuniões da campanha para a constituinte, e no meio de um exercício de prospectiva para o Brasil, o velho mestre disse que em cinqüenta anos ele estaria protegido pela morte. Ele estava sendo otimista demais: “[…] se o inimigo vencer, nem mesmo os mortos estarão a salvo dele. E esse inimigo ainda não parou de vencer” (BENJAMIN, 1991: p.156). Hoje, a sua memória é campo de batalha pelo “controle” do sentido da sua vida e da sua obra.

Alguém pode ficar com uma imagem instantânea do jovem Florestan defendendo a sua tese sobre os tupinambás. Esse “alguém” também poderá colocar o foco na adesão do estudante ao projeto da Missão Francesa para a formação de centros de excelência, nos seus esforços para incorporar o instrumental teórico aprendido com os seus professores ao estudo do Brasil. Muitos de nós, porém, preferimos outra perspectiva para observar a mesma cena: vemos o jovem aspirante sob o olhar agoniado da sua mãe, empregada doméstica, que pouco entendia do tema discutido. A mãe de Florestan, porém, bem percebia que a batalha que o seu filho livrava era a de um rapaz pobre para ter o seu saber reconhecido pela elite acadêmica. Adotar uma determinada perspectiva é, não nos enganemos, uma escolha de classe: a partir de qual lugar olhamos e falamos.

Não havia força suficiente para romper a cerca do jardim do conhecimento. Era preciso atravessá-la e se apropriar das flores alheias, que a elite cultivava. Florestan venceu essa batalha e fez muito mais: entre os acadêmicos foi o primeiro. Modelo de intelectual, professor de professores, cuidou das flores como ninguém. Quando o golpe militar pôs a prova os membros da academia, muitos dos acadêmicos expulsos da universidade refugiaram-se embaixo do guarda-chuvas de patrocinadores como a Fundação Ford. Florestan Fernandes podia ter se limitado a lecionar numa universidade do exterior, cuidando do jardim e replantando de um canteiro ao outro as belas flores do conhecimento sociológico. Teria sido honroso e nem um pouco covarde. Mas ele escreveu A revolução burguesa no Brasil, que fez às vezes de uma dobradiça na sua obra. A escrita desse trabalho, de alguma maneira, mudou sua vida.

Florestan não havia apenas ocupado um lugar na universidade. Não tinha apenas atravessado a cerca do jardim e se apropriado do saber dos acadêmicos, agora ele produzia um saber que fugia dos projetos dos jardineiros. Era uma prospectiva para o Brasil. Um saber fundamental para os militantes, porque problematizava com rigor e teimosia sobre as possibilidades do programa democrático e do programa socialista. Florestan já era o “intelectual orgânico” ainda que sem partido. Participou da construção do PT, pessimista da razão e otimista da vontade. Sem imaginar o PT como um destino, mas como uma possibilidade.

Nos últimos anos, era freqüente a lembrança dos seus tempos de estudante pobre, quando lia Durkheim no bonde. Também era assídua a recordação da época em que trabalhava como garçom e do seu aprendizado “de classe” com o seu colega García, espanhol e anarquista. Mas, de todos esses “flashes”, uma imagem sempre presente era a da presença da sua mãe não letrada na sua defesa de tese, muito mais do que os argumentos da banca e os seus próprios.

É esse mesmo Florestan Fernandes que o MST acolhe dando seu nome à sua Escola Nacional construída em Guararema. Foi ele o primeiro a romper a cerca que separa as grandes maiorias brasileiras do jardim do conhecimento sistematizado. A grande imprensa tem apresentado a escola dos Sem Terra com malícia e ironia. O que pode ser interpretado como mais um episódio no combate às ocupações de terra e à Reforma Agrária. Mas, na desqualificação à escola, há um plus de perversidade. É suficiente olhar para os números da pirâmide educativa: o lugar reservado aos pobres é junto à mesa, colhendo as migalhas que por ventura caem. Como não gritar contra o escândalo das políticas compensatórias impregnadas do cheiro acre do favor. Para a elite brasileira, a Escola Nacional do MST é um luxo. “Aliás, pergunta, de onde saiu o dinheiro?”. Pergunta nunca dirigida aos empresários privados da educação. A pergunta que os trabalhadores fazem, em troca, é: “quem levantou o prédio?”. Os nomes dos pedreiros, marceneiros, eletricistas, encanadores… costumam ficar perdidos. Na Escola de Guararema não: os nomes dos trabalhadores estão aí, eles ali estudaram, e os seus filhos, assim como os dos outros trabalhadores, poderão estudar lá.

A elite tolera os acampamentos quando eles aspiram apenas à sobrevivência das famílias, insultando-os com um olhar que pretende reduzi-los à condição de mendicante. Quando o acampamento vira assentamento, e quando o assentamento se torna produtivo, paradoxalmente, projeta sobre as famílias o medo paranóico à “barbárie” e ao “fundamentalismo”, palavras-chave usadas mais de uma vez para legitimar a violência “preventiva” contra os pobres.

Porque os Sem Terra não permanecem na condição de pobres para assim completar a paisagem tão conhecida, tão natural, da brasilidade? Porque não seguem o roteiro traçado de antemão, no cenário das casinhas de pau-a-pique, esperando que o Estado, algum dia, tenha a bem incluí-los no “contrato social” e realizar a Reforma Agrária que, afinal, “todos almejamos”? Ou, ainda, porque não ficam in eternum sobrevivendo junto às estradas da caridade pública sob os barracos de plástico preto para lembrar a todos que o Brasil é o país do futuro e sempre será? Porque os Sem Terra teimam em querer abandonar a pátria pobreza e constroem uma escola como a de Guararema?

Como será nessa escola a tensão entre apropriação do conhecimento e a reflexão sobre as práticas que as novas formas de conflito social vão colocando? Responder de antemão e dar a resposta como favas contadas é uma temeridade.

Antes de fazer o roçado, a horta para preparar a comida dos alunos, os Sem Terra prepararam o jardim, os caminhos bordados de flores e os canteiros, e plantaram uma muda de cada região do país, para que vingue. Do terraço do refeitório pode-se ver e ouvir uma fonte que lembra as das construções daqueles árabes da península ibérica que encorajavam o diálogo entre culturas diversas e mantiveram o tesouro das civilizações anteriores num período em que o resto de Ocidente enrijecia o seu pensamento dominado pelo “fundamentalismo”. Nessa Alahambra bem brasileira, um pouco distantes, mas não separados das lutas cotidianas, os estudantes pobres, e filhos de pobres, netos de pobres, de pobreza ancestral, cortam a cerca e não pisam nas flores. Como Florestan, querem ocupar os espaços do saber, neles resistir e também produzir novos saberes que, bem vistos, sejam pão e também o biscoito fino para todos comermos.

BENJAMIN, Walter. “Teses sobre a Filosofia da História” in: BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1991. Trad. Flávio R. Kothe.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.