A luta pelo Direito

Por Inês do Amaral Büschel

A frase acima é título de um pequeno livro de iniciação ao Direito. O texto foi escrito pelo jurista alemão Rudolf von Ihering, para ser apresentado em uma Conferência realizada em Viena, no ano de 1872. Era professor universitário e não pregava a revolução, mas foi um pioneiro na defesa da concepção do direito como produto social. O texto foi traduzido por inúmeros países e no Brasil teve sua primeira edição em 1909.

Após a publicação desse escrito, o autor sofreu dezenas de críticas ferozes que o acusavam de incitar a desordem, pois, no entender dos críticos, o Direito, tal qual a língua pátria, sofre mutações ao longo do tempo, sem lutas. Essas acusações o obrigaram a defender-se dizendo: “Em primeiro lugar, que não ajam, ao refutar minhas idéias, de modo a produzir uma distorção e desfiguração delas, fazendo de mim um arauto da discórdia e do espírito litigioso, o propugnador da emulação e das demandas, já que não proponho absolutamente a luta pelo direito em todos os casos, mas somente naqueles nos quais a agressão ao direito implica, igualmente, o desrespeito da pessoa humana. A transigência e o espírito de conciliação, tanto quanto a benevolência e a índole pacífica, os acordos amigáveis e a renúncia a fazer valer o direito encontram na minha teoria o lugar que lhes cabe; posiciono-me apenas contra um certo tipo de tolerância dúbia diante da agressão ao direito que compactua com a injustiça e é oriunda da vileza, do comodismo e da indolência”.

Logo no início do texto anuncia Ihering que: “o fim do direito é a paz e o meio para atingi-lo é a luta” e, ainda, “todo direito existente no mundo foi conquistado mediante luta”. Exemplifica citando as conquistas históricas da humanidade tal qual a abolição da escravatura e a livre escolha da fé, entre outras. Afirma, ainda, que ” o próprio fato do direito não nascer para os povos sem esforço, o fato de que estes têm tido que combater e pelejar, lutar e verter seu sangue para conquistá-lo, essa própria circunstância faz com que entre eles e seu direito se constitua o mesmo vínculo estreito que no momento do nascimento liga a mãe ao filho.”

“Não é simplesmente o costume, mas sim o sacrifício que gera o vínculo mais forte entre o povo e seu direito.” Sábias palavras, não é mesmo?

Diante dessas lições, vejam que magnífico exemplo nos deram aqueles 12 mil brasileiros que durante 17 dias marcharam por 233 km, pacífica e ordeiramente, para reivindicar o seu direito a um pedaço de terra para seu trabalho, sustento e morada. Entre eles, para nosso orgulho, estavam o Sr. Jocélio Dantas de Souza que usa cadeiras de rodas, o Sr.Luiz Beltrame de Castro, de 96 anos, e tantos outros cidadãos com pés incansáveis, mulheres jovens e idosas, crianças e adolescentes.

A Marcha Nacional pela Reforma Agrária organizada pelo MST e outras 40 entidades, contraria aqueles que terão, necessariamente, seus interesses ameaçados, pois são forças antagônicas. Desde a conquista do território brasileiro pelos portugueses, houve a proteção aos servidores do reino de Portugal. Entre os estímulos para a colonização estava a doação de imensas terras aos apaniguados. É esse o direito adquirido por muitas famílias que utilizam a terra para acumular riqueza e não para produzir. Chegaram primeiro. Estes não querem a renovação do direito. Os donatários foram transmitindo por herança esses direitos aos seus sucessores, que hoje defendem seu legítimo interesse e não desejam compartilhar nada com as gerações de sem-terra que surgiram no decorrer destes últimos séculos. Quem mandou nascerem depois e serem filhos de quem não herdou nada do reino de Portugal? Azar o deles.

Se os sem-terra ficarem de braços cruzados aguardando o surgimento da consciência jurídica nacional, irão dormir em berço nada esplêndido e para sempre. Na sociedade brasileira há um intenso desprezo pelos pobres. A eles nada deve o Estado, nem água, nem pão, nem abrigo. Por isso os jornais anunciaram que as autoridades competentes já mexiam seus traseiros em prol de verificar a ilicitude de atos dos governos locais (onde houve a concentração dos doze mil participantes da marcha) que gastaram R$400 mil reais no fornecimento de víveres. Essas mesmas autoridades, se estivessem na cidade de São Paulo, onde se realizou a 9ª edição da Parada Gay, estariam horrorizadas com o gasto de R$200 mil que o governo local despendeu, segundo nos informam os jornais, como colaboração à organização dessa bela festa paulistana.

Afinal, a quem serve o Estado? A todos os cidadãos daquela determinada nação, se não me falha a memória do que aprendi na faculdade de Direito. Se, entretanto, os cofres do Estado apenas servem para fortalecer aos proprietários, então já não sei o que é República e nem o que significa Estado Democrático de Direito.

O embaixador Rubens Ricupero, em artigo publicado no dia 15 de maio 2005 pelo jornal “Folha de S.Paulo”, nos pergunta “por que um país que tem justo orgulho de sua moderna agricultura de exportação não consegue eliminar a abjeta miséria do homem no campo? Por que a eficiência e a técnica se alcançam apenas ao preço da concentração da propriedade e do bem-estar, da expulsão e desemprego em massa da mão-de-obra, da propagação de favelas e bóias-frias até nas zonas pioneiras mais prósperas?”, para ao final ainda nos perguntar: ” de que lado ficariam, da marcha da terra ou de seus detratores, o Mahatma Gandhi e Martin Luther King?

Ouso responder, senhor embaixador. Às duas primeiras questões, penso que aqueles que estão bem de vida e contentes – não só os proprietários e produtores do agro-negócio, mas também aquela classe média com trabalho e bom salário – se agarram egoísticamente à sua fortuna, querem sempre mais, odeiam pagar impostos e fecham os olhos aos que nada têm de seu, classificando-os de subclasse e perigosos. Não são solidários com desiguais. Quanto à última pergunta, sem sombra de dúvida, tanto Gandhi como Luther King Jr. estariam marchando junto aos sem-terra, pois ambos gostavam da companhia de cidadãos livres que lutam pelos seus direitos.

As autoridades competentes e legalmente constituídas deste país, deveriam olhar-se no espelho, diariamente, e se perguntarem: a quem sirvo? A ordem estabelecida que defendo e fiscalizo é justa? O que significa justiça? Por que a população carcerária concentra pessoas que mal foram à escola e os crimes que cometem, na absoluta maioria das vezes, são furto e roubo?

Após essa reflexão coletiva e a tomada de decisões honestas exigindo dos governos a realização do Plano Nacional de Reforma Agrária, o Brasil, certamente, sairia das manchetes mundiais como o detentor dos primeiros lugares em matéria de desigualdade social e injustiça.

Inês do Amaral Büschel é promotora de justiça de SP aposentada e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático