Salvar o capital de esperança

Por Leonardo Boff
Fonte Jornal do Brasil

Independente de seu desfecho, a atual crise política está provocando o que é próprio de toda crise: um processo de acrisolamento e de purificação. Ela purifica nossa visão da realidade social brasileira, trazendo à tona o que se esconde por debaixo da política vigente: um profundo vazio de legitimidade e de representatividade.

Não se criou aqui uma sociedade com atores autônomos e ativos. No Brasil, há um outro país feito de massas deserdadas e anônimas. O Estado, desde sua fundação, foi excludente e antipopular, apropriado por elites que o usam para garantir seus privilégios e realizar seus interesses. Elas não têm um projeto Brasil, incluindo a todos, mas um projeto para si, excluindo ou subordinando os demais.

Só há um Estado verdadeiramente soberano e uma classe política representativa quando assentados sobre uma sociedade com atores autônomos e ativos, que na verdade nunca existiu consistentemente. Sem uma sociedade organizada por cidadãos participantes, esvazia-se a democracia e se liquida a representatividade.

Num cenário como este, o negócio, o tráfico de influência, a distribuição de vantagens e o assalto ao bem público fazem com que a corrupção seja sistêmica. Ela é uma moeda corrente que compra e vende tudo. Quase todos participam, quase todos são cúmplices, quase todos se ajustam e quase todos se acobertam mutuamente. O que não pode é serem surpreendidos, porque então começam a funcionar as leis e os processos que, pelas muitas manobras, normalmente, terminam em nada. Esta foi a lógica dominante, com honrosas exceções de figuras políticas íntegras e incorruptíveis, mas que não conseguiram modificar este rumo.

A chegada do PT ao governo central foi o primeiro grande ensaio de outra classe política, de outro sentido de Estado e de outra ética pública. O presidente Lula encarna em sua biografia esta viragem na história política brasileira. Ele foi eleito pelo apelo das bandeiras da ética e das mudanças. Teve que enfrentar o peso de toda uma história de séculos e uma conjuntura extremamente vulnerável. Não tendo a maioria do Parlamento, fez composições para garantir a governabilidade.

Até que ponto estratos de seu governo não foram contaminados pela lógica corrupta das coisas? Até que ponto faltou prudência política nas alianças com partidos pouco confiáveis? Não nos cabe antecipar desfechos. Independente dos juízos que possamos fazer do desempenho do governo Lula, consideramos de fundamental importância, numa perspectiva de futuro, continuar sustentando as duas bandeiras, a da ética e a das mudanças.

Sem mudanças substantivas jamais vamos fundar uma sociedade de cidadãos participativos e recriar um Estado com sentido social, aberto à fase globalizada da história humana. Sem uma ética da transparência, do valor do serviço público e sem o controle sobre os desvios possíveis faltará o óleo que fará tudo funcionar. Urge salvar o capital da esperança.

Estou convencido de que o PT e o presidente Lula ainda vivem deste sonho. A crise os purificará e amadurecerá. Junto com a base parlamentar, importa alimentar a base popular, já oferecida pelas dezenas de entidades que escreveram a Carta aos Brasileiros em apoio e em cobrança do governo, conscientes de sua autonomia, mas também de sua responsabilidade. Então será verdade o que Platão escreveu: ”todas as coisas grandes acontecem na crise”.

Leonardo Boff é teólogo, escritor, professor emérito de ética da UERJ, ideólogo da Teologia da Libertação e autor, entre outras obras, de “Igreja, Carisma e Poder”.