Uma homenagem à amizade

Palavras proferidas por Heloísa Fernandes, socióloga e filha de Florestan Fernandes, durante a inauguração da biblioteca da Faculdade de FIlosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 10/08/2005. A biblioteca leva agora o nome de seu pai, que ontem completou dez anos de falecimento.

Agradeço em nome da minha mãe, Myriam Rodrigues Fernandes, dos meus irmãos e de toda família do meu pai a homenagem que a Universidade de São Paulo, aqui representada por seu magnífico reitor, Prof. Dr. Adolpho José Melfi, presta hoje a Florestan Fernandes. Mas é como professora do Departamento de Sociologia que agradeço comovida aos meus colegas e amigos, especialmente ao Diretor da Faculdade, professor Sedi Hirano, e aos professores Antonio Candido, Gabriel Cohn, Maria Arminda do Nascimento Arruda, Zilda Iakoi, aos meus colegas do Departamento, da Faculdade, da Universidade, e, também, aos funcionários, aos alunos e aos amigos de Florestan aqui presentes.

Ainda ontem, eu lastimava que o nome de Florestan Fernandes não estivesse em nenhuma praça, rua, sala ou salinha da Universidade de São Paulo e, hoje, seu nome está sendo reconhecido junto à sua única e verdadeira fortuna: o livro. Meu pai, um homem simples e modesto, sentia-se muito honrado com as homenagens que recebeu em vida; prezava-as todas, sem hierarquias, vestindo-se de pompa, orgulho, emoção e muita alegria. Imagino como estaria feliz aqui, hoje, homenageado por amigos, professores, alunos, funcionários, militantes e todos esses livros! Eu mesma já disse, uma vez, que foi nos livros que Florestan encontrou como alimentar-se, lúcida e apaixonadamente, da cultura do seu tempo e das mais generosas utopias do seu século.

Sabemos que meu pai descende de camponeses que emigraram de Portugal para Bragança, no interior de São Paulo, e que, mais tarde, minha avó paterna migrou para a capital onde encontrou enormes dificuldades para sobreviver, tornando-se empregada doméstica na residência da família Bresser, onde meu pai nasceu, em 1920. Para essa família aristocrática, Florestan era um nome muito nobre para um filho de doméstica e foi assim que ele passou a ser chamado e a se reconhecer como Vicente.
Meu pai considerava-se parte do lumpen-proletariado, “na minha arquitetura mental (…) estávamos pouco abaixo dos gatunos profissionais e dos vagabundos, das prostitutas, dos soldados da Força Pública” . Gente emparedada num círculo de ferro sem ao menos vislumbrar como sair dali. Pois aos 17 anos, em 1937, com a escola, com o curso de madureza, com os professores, as leituras, os debates – “para nós, era puro mel e uma revolução” – foi invadido, como ele diz, por uma “grande alegria de viver e uma esperança sem limites, como se o mundo me pertencesse e, a partir daí, tudo dependesse de mim” .

Rompia sozinho o círculo de ferro que o atava aos “de baixo” e adentrava, como aluno do Curso de Ciências Sociais, aos 21 anos de idade, a Universidade de São Paulo. Entrava radiante só para descobrir, como ele nos diz, que suas “falhas de formação e de informação eram imensas, por assim dizer, ‘enciclopédicas’ – e claramente insanáveis”. Uma encruzilhada e duas saídas: desistir ou “submeter-me a uma disciplina monástica de trabalho” na Biblioteca Municipal e na Biblioteca Central da Faculdade. Com tenacidade, determinação, sacrifício, escolheu a segunda alternativa. Afinal, seria seu único passaporte para o lado de lá. Mais tarde, já formado e contratado como professor da Faculdade, ainda foi preciso “esconder minha insegurança, disfarçando o estado de pânico, que demorou para dissipar-se” plantando-me “pelo maior espaço de tempo possível, todos os dias” nas bibliotecas.

Escola e livros, universidade e livros, bibliotecas; os livros transformavam-se nas moedas de saber com as quais ia desatando aquele círculo de ferro. Na feliz metáfora de Paulo Silveira, Florestan “encara os livros como aquela ‘vara’ de salto que leva o atleta muito mais alto do que ele poderia ir sem ela”. O próprio Florestan reconheceu melhor que ninguém a envergadura da metamorfose quando ocorreu essa sua passagem para o mundo de cima:”o Vicente que eu fora estava finalmente morrendo e nascia em seu lugar, de forma assustadora para mim, o Florestan que eu iria ser”. Um Florestan decidido a dedicar os próximos vinte e quatro anos da sua vida à Universidade de São Paulo onde, com uma brilhante equipe de jovens assistentes, fundou aquela que seria chamada de Escola Sociológica de São Paulo; “um pequeno mundo”, diz ele, “o qual, aliás, bem depressa se converteu na razão de ser de nossas vidas e no eixo em torno do qual iriam girar as nossas atividades profissionais ou políticas” , até ser compulsoriamente aposentado, em 1969, pela ditadura militar, quando ainda não havia completado 49 anos de idade.

Mas não é do Florestan, sociólogo, que quero falar aqui, hoje, mas do Vicente, dos que permanecem presos do lado de lá do círculo de ferro, os “de baixo”, os deserdados, como ele dizia, essa imensa maioria de brasileiros com os quais manteve um compromisso ético, afetivo e político. Penso mesmo que Florestan sociólogo construiu conceitos e interpretações – ou a eles recorreu – os quais deve ao Vicente do outro lado do círculo de ferro, e os exemplos são inúmeros: circuito fechado; cerco capitalista; capitalismo selvagem; deserdados da terra; massa dos excluídos e marginalizados; revolução burguesa que se fechou para a plebe; democracia restrita; Estado autocrático. Florestan sociólogo foi um incansável denunciante dos infinitos “processos de espoliação, de exclusão e de subalternização impiedosa dos de baixo”.

“O passado não conhece seu lugar, ele está sempre presente” bem-vinda tese que, para um amigo querido , seria de Mario Quintana. Florestan tornou-se um aliado do Vicente, dessa imensa maioria que não consegue romper o círculo de ferro, deixando-lhes uma advertência – cuidado, essa gente de cima tem medo de povo – e um conselho – estudar. Pois não foi isso mesmo que me escreveu ainda outro dia João Pedro Stédile, dirigente do MST: “nosso país precisa de um povo culto, consciente e organizado, que lute por seus direitos, de forma coletiva. Não de candidatos. Foi isso que aprendemos com teu pai e procuramos aplicar na prática”.

“O passado não conhece seu lugar ,ele está sempre presente”, porque os Vicentes não param de nascer e renascer a cada dia. Vicente, o engraxate, o filho da empregada doméstica, sempre teve onde morar, mesmo precariamente. Agora, ainda ontem, na semana passada, em São Paulo, capital, crianças de rua são despejadas das suas casinhas de boneca ou de cachorro porque as autoridades “não podem permitir que o espaço público seja ocupado dessa forma” ; é um Vicente de 13 anos quem diz que “era uma linda casinha, azul por fora e branca por dentro. Mas tudo que é bom, dura pouco e tudo que é ruim, permanece. A vida já me ensinou isso”. Florestan sociólogo tinha de ser socialista, foi como firmou seu compromisso com Vicente, com os “de baixo”, com os que permanecem do lado de lá do círculo de ferro, um círculo que só pode ser rompido de vez coletivamente.

“O passado não conhece seu lugar, está sempre presente”! Quem disse que Florestan não está bem presente aqui, entre nós, representado, e tão bem, onde sempre esteve, em Antonio Candido, esse seu amigo de mais de cinqüenta anos? Uma amizade que nasceu quando dois jovens de 21 e 23 anos encontraram-se aqui mesmo nesta universidade. Uma amizade que persistiu, cresceu, amadureceu. Nossos melhores filósofos pensaram que o amigo “é um outro nós mesmos” pois “quando queremos conhecer-nos a nós mesmos, conhecemo-nos vendo-nos em um amigo”. Antonio Candido e Florestan passaram muito tempo convivendo, conversando, vendo-se, construindo-se. Tiveram tempo até mesmo para escrever um sobre o outro . Nisso que escreveram encontramos o espelho onde se construíram; com afetos (os textos de um sobre o outro falam de amor, solidariedade, compaixão, generosidade), com disposições morais (falam de integridade, dignidade, retidão moral, senso do dever, ética profissional), como sujeitos (cada um reconhece no outro o lutador, o militante socialista, o professor por vocação, o humanista visceral, o homem de luta e de ideal). Em suma, dois amigos que se reconhecem pelos valores que cultivaram: integridade, dignidade, liberdade, justiça. Vicente bem soube ter encontrado em Antonio Candido um espelho onde construiu seu Florestan; um Florestan que, acompanhado da sabedoria do amigo, foi perdendo o pânico da sua solidão do outro lado do círculo de ferro. Em 1965, meu pai escreveu uma carta à minha mãe que, embora datada e localizada, guarda um significado que vai além desse encontro. “Miriam, estive com Bastide e a esposa, em Anduze. Foram gentis comigo, só me deixaram voltar dois dias depois. Teria ficado sozinho em Paris, ao retornar. Por sorte, o acaso lançou o Antonio Candido nos meus braços no Boulevard Saint Germain (…) O Antonio Candido me regalou com um jantar principesco. Depois que encontrei o Antonio Candido, tenho boa companhia para as andanças por Paris. Ele já conhece tudo e toma o cuidado de me mostrar o que possui maior interesse”. O acaso lançou Antonio Candido nos braços de Florestan e foi assim que o Vicente completou sua travessia para além do círculo de ferro: “ele já conhece tudo e toma o cuidado de me mostrar o que tem maior interesse”.

Antonio Candido recusou perder Florestan assumindo a tarefa de dar testemunho do amigo, do seu valor, dos seus valores: integridade, dignidade, liberdade, justiça, o que há de melhor em nossa cultura, o que há de nobre nesta universidade. Penso que ainda haveremos de comemorar como se deve quando esta biblioteca passar a chamar-se Antonio Candido e Florestan Fernandes, uma homenagem à amizade.