Paradoxos e desafios de um referendo

Por Emir Sader

Paradoxal a resposta à catastrófica situação da segurança pública no Brasil – de que São Paulo e o Rio de Janeiro são os exemplos mais claros: o descontentamento com a insegurança generalizada levou a que os que votaram no referendo do domingo passado preferissem não mudar nada, deixar tudo como está, sem nem sequer tentar verificar se a limitação da venda de armamentos pode diminuir a criminalidade.

Costuma-se dizer que os processos judiciais são ganhos pelo melhor advogado, não pela culpabilidade ou inocência do acusado. Os processos de voto, cada vez mais submetidos ao marketing, elegem a melhor campanha, não necessariamente o melhor candidato, o melhor partido ou o melhor programa. Os brasileiros foram convencidos da vantagem de manter as coisas como estão, condenando-as. E, se forem ser coerentes – tomara que não o sejam – comprarão armas em massa, para matar o leiteiro imprudente do poema de Carlos Drummond de Andrade, que se arrisca a entrar cedinho no jardim da casa para deixar o leite.

Triunfaram, em primeiro lugar, os bolsonaros, a “bancada da bala” – aqueles do “bandido bom é bandido morto”, de que “direitos humanos é defesa de bandido”-, gente ligada aos esquadrões da morte, às políticas sistemáticas de dizimação da população pobre – especialmente a jovem negra e mulata -, pagas por empresários das periferias das grandes metrópoles. Triunfaram os que ainda acham que “questão social é questão de polícia” (e de para-policiais), como a UDR, Jorge Bornhausen e a Editora Abril (cuja sede, dizem, é de propriedade de uma feliz fábrica de cartuchos, contentíssima com a campanha de seu inquilino, que espera lhes propiciar mais mercado).

Triunfaram os marginais, que poderão contar com mais armamentos comprados legalmente para resgatá-las de seus compradores e assaltá-los (como 75% dos crimes são cometidos com armas compradas legalmente e roubadas a seus proprietários, espera-se que com o aumento da venda de armas, exista um montante maior ainda disponível para esses marginais).

Pode-se acusar os que votaram pela limitação do comércio de armamentos de ingenuidade ou de inocuidade, mas nunca de quererem legitimar o estado de coisas existentes. Certamente os movimentos sociais, os sindicatos, os movimentos pelos direitos humanos, a grande maioria dos militantes sociais e políticas das causas humanistas votaram pelo sim.

Os que não acreditavam que houvesse no Brasil uma enorme onda direitista – conservadora, racista e repressiva -, devem considerar com toda atenção a campanha e os resultados do referendo. Aqueles que metem a cabeça, como cangurus, nos enfrentamentos imediatos dentro da esquerda, jogam aí toda sua energia e se esquecem de que existem direita, imperialismo, para-policiais, indústria de armas, etc., etc., que querem reduzir tudo ao combate imediato – de tendências ou de grupos dentro da esquerda -, ajudaram a esse resultado, a essa vitória da direita, pela ótica completamente equivocada que têm do país, da relação de forças entre direita e esquerda – no Brasil, na América Latina e no mundo – e das prioridades táticas e estratégicas. Por isso costumam ficar à margem da história, incapazes de construir alternativas e incidir no processo histórico – como foram capazes as grandes lideranças de esquerda – entre elas, contemporaneamente, Fidel e Hugo Chavez, entre outros. Líderes que agregam, ao invés de dividir; que sabem discernir os grandes inimigos e os enfrentamentos decisivos; que sabem colocar a ideologia a serviço da política e não o inverso.

Alguns chegaram a se opor à limitação da venda de armamentos, alegando que impediria que o povo se armasse, como se na Rússia, na China, em Cuba, na Nicarágua ou na Venezuela, os trabalhadores tivessem se armado mediante a compra legal de armas no comércio autorizado. Outros, com seus infalíveis olhos de lince, viram mais uma gigantesca manobra do governo para distrair a opinião pública – com uma ótica bem ao estilo da “guerra fria” – e se ausentaram da campanha.

Incrível a falta de solidariedade de gente que se quer de esquerda, mas não se identificam com a posição do MST – vítima privilegiada da UDR e dos seus capangas, armados mediante compras no comércio legal, como eles mesmo confessaram. Incrível a falta de solidariedade com os pobres, que são vitimas cotidianas dos massacres na periferia das grandes metrópoles.

Mas não nos enganemos: o autoritarismo socialmente enraizado conseguiu uma grande vitória. Descontando a campanha mal feita pelo sim, a confusa opção do voto, o empenho abaixo do requerido por parte dos partidos, dos movimentos sociais, dos militantes, dos estudantes, dos intelectuais críticos – aparte isso, é preciso que tiremos lições sobre a gravidade do resultado do referendo.

É preciso que os partidos de esquerda, os movimentos sociais, os movimentos de direitos humanos, as igrejas progressistas, os militantes de esquerda, os intelectuais de esquerda, as organizações estudantis, reflitam profundamente sobre o grau de isolamento das idéias e das forças de esquerda que o resultado desse referendo expressa. O impulso democrático existente no final da ditadura, se esgotou. Hoje o que se esconde em grande parte das mentes, é a expressão raivosa que, numa crise de sinceridade, Jorge bonrhausen deixou escapar: o ódio de classe, traduzido em “raça”, que gosta ou fecha os olhos diante das barbaridades que a polícia e os grupos de extermínio realizam.

A esquerda, as forças democráticas, as pessoas com valores humanistas, saímos derrotados e a foto que sai do referendo é muito perigosa. O fracasso das políticas atuais de segurança pública e a ausência de alternativas no campo democrático, é um alimentador desse autoritarismo racista. Mas o fracasso do governo Lula em encarnar valores alternativos é outra fonte de desengano, de gente que vai buscar explicações e refúgio nas visões naturalizadoras da violência, que fazem recair sobre os pobres o ônus mais grave – de supostos agentes da violência, mas na realidade de vítimas privilegiadas dela.

O isolamento social da esquerda é muito grande, a grande mídia privada – o verdadeiro partido das classes dominantes – forma e deforma a opinião pública a seu bel prazer. Os programas sensacionalistas na TV, com o pretexto de pedir justiça para casos de violência, na verdade insuflam sentimentos ruins, que multiplicam a cultura da violência. O próprio fato de que grupos de esquerda, que se pretendem “classistas”, não incorporarem questões democráticas como a regulação estatal do comércio de armas, revela como há um enorme campo a ser trabalhado, inclusive dentro da esquerda.

O referendo não muita nada em termos concretos no país, quem comprava arma continuará comprando, quem as roubava para cometer crimes, continuará fazendo-o, talvez aumente um pouco o comércio de armamento. Mas a maior diferença é a consciência – da direita e, espero, da esquerda – do enorme potencial de autoritarismo racista presente na mente de tanta gente, que pode ser explorado pela direita e dever ser um dos grandes temas de debate, polêmica e formação, por parte da esquerda.