Monoculturas de eucalipto são os novos latifúndios do Uruguai

Por Daniel Cassol Enviado especial ao México

Por Daniel Cassol
Enviado especial ao México

Na década de 1960, os Tupamaros lutavam contra o maior latifúndio do Uruguai, que tinha 33 mil hectares. Hoje, só uma empresa estadunidense possui 120 mil hectares de plantações de eucalipto. “O Uruguai está vivendo um processo de concentração da terra que jamais havíamos visto. São novos latifúndios, mas muitos mais extensos”, afirma o ambientalista uruguaio Carlos Santos, da Rede Amigos da Terra. Nesta entrevista, realizada durante o Fórum Internacional em Defesa da Água, na Cidade do México, Santos conta como foi a luta dos uruguaios para expulsar as transnacionais da água do país e como foi o plebiscito que colou um artigo na Constituição que impede a privatização da água. Para os ambientalistas uruguaios, a luta contra as fábricas de celulose faz parte da luta pela defesa dos recursos hídricos.

Como começou o processo de construção do plebiscito que colocou na Constituição do Uruguai a água como direito e bem publico?

R: O processo do plebiscito se desencadeia a partir da assinatura da carta de intenções entre o governo uruguaio e o Fundo Monetário Internacional, onde o país se comprometia a estender a privatização a todo o país. A privatização havia começado na segunda metade da década de 1990, com a participação da empresa francesa Suez, e foi até o ano de 2000, com a empresa espanhola Aguas de Bilbao. Com essas duas empresas, se privatizou todo o sistema de água do estado de Maldonado, que fica na costa atlântica do Uruguai, o segundo em arrecadação para as empresas públicas de água. Quando começa a concessão das águas, em 1993, o presidente era Luis Alberto Lacalle. A expansão da Suez continuou com a presidência de Julio María Sanguinetti e a entrada da Águas de Bilbao acontece no período de Jorge Batlle. Ou seja, toda uma coleção de presidentes neoliberais que foram deixando seu rastro na privatização da água. A carta com o FMI foi assinada pelo presidente Batlle. Em 2002, em plena crise financeira do rio da Prata, na Argentina e no Uruguai, a garantia que o país deu na renegociação da sua dívida foi a abertura do serviço publico da água à participação privada. Quando se assina a carta de intenções, vários atores sociais começam a se mobilizar. Alguns já estavam organizados na Comissão de Usuários de La Costa, que era onde se estenderia o processo de privatização da água. Esse grupo começa a se mobilizar, entra em contato com o sindicato dos trabalhadores das empresas de água, com organizações ambientalistas, como a que integro, e aí começa a se formar uma espécie de núcleo, com a entrada também da comunidade de Maldonado. Assim, se forma uma Comissão Nacional em Defesa da Água e da Vida. A primeira idéia que se gesta é um projeto de lei de iniciativa popular. No entanto, justo no processo de discussão da Área de Livre Comércio das Américas, que se colocaria acima de todas as leis nacionais. A estratégia foi trabalhar em nível constitucional, que é o marco legal mais alto do país. Então escrevemos um texto e começamos a coletar assinaturas, em outubro de 2002. Em outubro de 2003, entregam-se as 300 mil assinaturas necessárias para fazer o plebiscito em outubro 2004, junto à eleição presidencial. Quando se conclui a votação, o plebiscito da água tem 64% de apoio da sociedade, enquanto a Frente Ampla, de Tabaré Vasquez, teve 51%, o que significa que conseguimos atingir a um consenso bastante amplo na sociedade.

Qual é o conteúdo da lei?

R: É um artigo bastante extenso, mas basicamente o que coloca é que a água é um direito humano fundamental, a gestão da água tem que ser feita exclusivamente por figuras públicas, com critérios de participação e controle social, com gestão sustentável. Depois, há posições muito pontuais. Por exemplo, que é proibido pagar indenização às empresas pelo lucro que poderiam ganhar.

Que organizações participaram desse processo?

R: O núcleo que fundou a comissão foi composto pela Federação dos Funcionários das Empresas Estatais de Água, a comissão dos moradores de La Costa, os moradores de Maldonado e a rede Amigos da Terra. Assim que esse núcleo começa a funcionar, passam a se somar organizações como a Central Única dos Trabalhadores, outros sindicatos, organizações de produtores rurais, institutos acadêmicos, ativistas, etc. Quando conseguimos as 300 mil assinaturas, conquistamos o apoio da Frente Ampla, que formou parte da comissão entre 2003 e 2004, promovendo o plebiscito, e também um setor do Partido Nacionalista, que via o plebiscito como uma maneira de defender a soberania do país sobre os recursos naturais. Depois do plebiscito, os partidos se retiraram da comissão, que atualmente segue funcionando.

E quais são os desafios da comissão daqui pra frente?

R: O primeiro problema que tivemos foi que o governo Tabaré, pressionado pelas multinacionais, assinou um decreto que vai contra a Constituição, que dizia que as transnacionais deveriam se retirar do país, porque a gestão da água deve ser pública. O decreto permitia a presença das duas empresas, a espanhola e a francesa. Então, num primeiro momento estivemos dedicados a isso. Em outubro de 2005, a Águas de Bilbao se retirou do país. Agora, em fevereiro, foi embora a Suez. Com a tranqüilidade da primeira grande tarefa cumprida, estamos começando uma discussão sobre uma política nacional de água, ou seja, como fazer que o princípio que está na Constituição seja aplicado. Precisamos regulamentar o debate que está se dando em nível parlamentar. Foi criada uma Secretaria de Águas, com a participação da sociedade, e estamos estimulando a participação das comunidades locais na gestão da água.

Outro problema que a comissão deve enfrentar agora é esse conflito com a construção das fábricas de celulose, que também é uma de nossas preocupações. A Comissão Nacional em Defesa da Água entendeu que essas duas empresas contaminantes não só vão trazer efeitos ambientais graves, como também vai consolidar, no Uruguai, um modelo de desenvolvimento que não foi definido democraticamente, que é o modelo de monocultivo ambiental para a produção de celulose. Estamos fazendo uma discussão, tomando como ponto de partida a nossa própria Constituição, que diz que o uso da água deve estar orientado primeiro por objetivos sociais do que econômicos.

São somente essas duas fábricas que estão se instalando no Uruguai?

R: Existem atualmente duas pequenas plantas, que na realidade atende a demanda por papel do Uruguai e ainda exportar. Ou seja, a demanda de do país está coberta. A fábrica que está por ser construída, uma delas da empresa finlandesa Botnia, é uma das maiores do mundo e vai produzir pasta de celulose para a Europa, que é parte mais contaminante do processo de produção de papel. O efeito que vai ter não é só para o Uruguai, porque a demanda é tão grande que vai demandar eucalipto não só do Uruguai, mas também do sul do Brasil e da Argentina. Isso vai provocar um efeito muito grande no modelo de desenvolvimento de toda região. Além das duas fábricas finlandesas que devem se instalar, nós temos informações que existem pelo menos outras duas plantas previstas. Uma seria a Stora Enso, que está se instalando no Rio Grande do Sul, e outra seria de capital estadunidense. Mas há gente que fala em até sete fábricas de celulose para o Uruguai. Vamos deixar de ser um país que produz carne e alimentos, para ser um país produtor de monocultivo árvores. Para nós, a preocupação não é apenas com os efeitos ambientais desse modelo, sobre a água e sobre o ecossistema do pampa, mas com os efeitos sociais que esse tipo de cultivo gera. Está se expulsando os trabalhadores do campo porque os donos vendem a terra e os trabalhadores que a ocupam se vêem obrigados a sair, ou porque os trabalhadores se vêem rodeados de eucalipto e não conseguem mais trabalhar, porque crescem as pragas e afeta-se a água. Ademais, está gerando um processo de concentração da terra que jamais havíamos visto no Uruguai. São novos latifúndios, mas muitos mais extensos. Os tupamaros, a guerrilha uruguaia, enfrentaram um dos maiores latifúndios do país na década de 1960, que tinha 33 mil hectares. Atualmente, uma empresa estadunidense tem 120 mil hectares no Uruguai, ou seja, está ocorrendo uma latifundização e uma estrangeirização do país. Os proprietários dessas plantações de eucalipto são estadunidenses, espanhóis, finlandeses, chilenos, argentinos. Portanto, está ocorrendo uma das transformações mais fortes no meio rural uruguaio e, se permitir a entrada de todas essas fábricas, esse processo será irreversível.

Qual a sua opinião sobre a ação das mulheres da Via Campesina contra a Aracruz Celulose, no Rio Grande do Sul?

R: Achei muito boa. Creio que no Uruguai não possa acontecer algo assim, porque a população rural é muito menos tensa do que no Brasil, e também por questões culturais e de organização política. Entendo perfeitamente que as mulheres da Via Campesina tenham reagido dessa maneira, porque todos esses efeitos das monoculturas de eucalipto e das fábricas de celulose vão contra os direitos humanos da população e em favor dos interesses das grandes corporações.