Melhorias na distribuição de renda: falácias, meias verdades e dados de realidade

Por
Guilherme C. Delgado*
Fonte Correio
da Cidadania


Uma mentira repetida sistematicamente adquire foros de verdade, segundo
o teórico da propaganda nazista, Joseph Goebbels. Imagine-se
uma meia verdade repetida sistematicamente! Este parece ser o caso da
tese de que navegamos no caminho da melhoria na distribuição
de renda, de maneira firme, há pelo menos uma década,
com especial ênfase no período do governo atual. O argumento
parece irretorquível – passado de mão em mão
por consultores do Banco Mundial, jornalistas formadores de opinião
e mais recentemente pelo próprio líder do governo no Senado,
Aloízio Mercadante (atual candidato do PT ao governo de São
Paulo), em livro recém publicado (“Brasil – Primeiro
Tempo – capítulo 7”, – São Paulo – Ed.
Planeta – 2006). Apóiam o argumento uma série de
“índices de Gini da Renda Domiciliar”, levantada
pela Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE (1995-2004),
e outras tabulações comparativas da distribuição
dos “10% mais ricos sobre os 40% mais pobres”, com base
também nas PNADs.

Para esclarecer
o que é verdade nas meias verdades, é preciso separar
o joio do trigo. De fato, a “renda familiar”, levantada
pela PNAD, onde basicamente se apuram os “rendimentos do trabalho”,
e os “rendimentos oriundos da seguridade social”, que correspondem
a 96% de todos os rendimentos levantados por essa pesquisa, melhoraram
de perfil distributivo. Mas isto é um fenômeno restrito
a essa medição da renda familiar e à forte influência
que sobre ela exercem os pagamentos de aposentadorias e pensões,
que praticamente dobraram sua participação entre 1991
e 2002, enquanto a renda do trabalho caiu de peso no mesmo período
– de 85% para 73,8%, como se observa na Tabela I:

Tabela
I
Renda Pessoal – Domiciliar (1) – Evolução segundo
fontes principais


Fontes de Renda

1991

2000

2003


Renda Familiar Total
100
100
100


Renda do Trabalho (%)
85,3
78
73,8


Renda da Seguridade (%)
10,2
16
22,4


Outras Fontes de Renda
4,5
6
3,8

Fonte
dos Dados: Censo Demográfico – 1991 e 2000 e PNAD 2003

(1) Corresponde à renda familiar, considerando-se o conceito
família – domicílio do IBGE, e aos rendimentos monetariais
de todos os membros para todas as fontes.

A verdade
na meia-verdade é, portanto, que a renda-familiar no conceito
IBGE melhorou de distribuição entre as famílias
por conta dos benefícios da seguridade social, pagos pelo INSS,
cujo perfil é fortemente concentrado no salário mínimo.
Mas essa renda familiar é apenas uma parte pequena – menos
de um terço – e cadente da renda interna gerada no Brasil. Quando
não se esclarece isto, omite-se o destino e o perfil dos restantes
dois terços da renda social que não vão às
famílias, no conceito do IBGE.

Estritamente
no conceito da renda monetária familiar, a participação
desta no total da renda interna é dada conforme visto na Tabela
II
.

Tabela
II



Renda Interna Bruta

1999

2000

2001

2002

2003


Produto Interno Bruto
100
100
100
100
100


Rendimento das Famílias (%)

34,36
32,15
31,78
31,62
31,35

Fonte:
IBGE – “Sistemas de Contas Nacionais – Brasil –
2003” – pág. 48

No conceito
das contas nacionais, os rendimentos que não vão às
famílias estão apropriados pelas “Empresas Financeiras”,
“Empresas não Financeiras” e “Administração
Pública”, isto sob o enfoque da distribuição
institucional.

Por sua
vez, se adotarmos o critério da distribuição funcional
do tipo capital – trabalho, a informação fica mais
direta sobre quem se apropria das fatias maiores da totalidade da renda
Interna. Vejamos o que nos diz o IBGE, na sua publicação
“Sistema de Contas Nacionais do Brasil –2003”, disponível
na praça desde maio de 2004, conforme Tabela III.

Tabela
III

Participação dos rendimentos do trabalho na renda
interna


Anos


1999


2000


2001


2002


2003


PIB = Renda Interna Bruta
100
100
100
100
100


1. Renda dos Empregados (%)
38,14
37,87
37,04
36,14
35,65


– Salários e Ordenados (%)
27,42
26,81
26,31
26,13
25,69


Contribuições Sociais (%)

10,72
11,06
10,63
10,01
9,95


2. Rendimento Misto – Trabalho-Capital (%)
5,69
4,62
4,7
4,33
4,48


3. Impostos s/ produção líquidos de subsídios (%)

15,65
16,17
17
17,35
16,92


4. Excedente Operacional Bruto (%)
40,51
40,63
40,9
41,93
42,99


5. Relação dos Salários e Ordenados sobre o Excedente Bruto (%)

0,68
0,67
0,64
0,62
0,6

Fonte:
“Sistema de Contas Nacionais do Brasil – 2003 – Rio
de Janeiro – IBGE – 2004” – pág. 36

Dos dados
apresentados sobre distribuição da “renda familiar”
(um terço de renda interna) e distribuição da renda
interna bruta (100%), pode-se concluir fundamentadamente o seguinte:

A renda
familiar (conceito PNAD), equivalente a cerca de 31% da renda interna,
cai, como proporção desta, de 34% para 31% no período
considerado, de 1999 a 2003. No mesmo período, os rendimentos
monetários oriundos das contribuições sociais –
direitos sociais da Previdência e da assistência social
incorporados à renda das famílias – ou, ainda, as
rendas imputadas (educação básica e saúde
pública) compensam a forte queda da renda oriunda do trabalho
(salários e ordenados). Esse elemento compensatório, de
sentido anticíclico, tem efeitos de melhoria na distribuição
da renda familiar em razão do perfil fortemente equalizador dos
pagamentos dos benefícios realizados pelo INSS. Observe-se que,
sozinho, este instituto é responsável pelo pagamento de
benefícios às famílias equivalentes a 7% da renda
interna, e tais pagamentos estão concentrados no nível
do salário mínimo. É isto que explica a queda do
Índice de Gini (melhoria na distribuição pessoal)
durante dez anos (1993-2004).

A distribuição
funcional da renda, estritamente na relação massa de salários
e ordenados pagos/lucros brutos, cai sistematicamente no período
– de uma proporção de 68% em 1999 para 59,8% em
2003. Isto significa uma piora na distribuição funcional
capital-trabalho, refletindo o processo de concentração
econômica dos mercados no período.

A informação
isolada sobre o perfil da renda pessoal da PNAD, sem a devida qualificação
do seu peso e composição, pode induzir o leitor a conclusões
equivocadas do tipo: a) a desigualdade está sendo revertida espontaneamente,
logo não há por que intervir neste campo; b) a desigualdade
está sendo revertida sistematicamente e a causa dessa reversão
é a ação política do governo atual –
sendo o Programa Bolsa Família apresentado como causa eficiente.

As duas
conclusões, como pode o leitor inferir, são equivocadas,
embora se fundamentem em meias verdades empíricas.

O Programa
Bolsa Família em 2004, único ano em que a PNAD recolheu
seus dados, lançados na rubrica “outras fontes de renda”,
tem méritos e algum efeito distributivo. Mas é um despropósito
conceitual e empírico tratá-lo como causa da melhoria
na distribuição pessoal da renda. Somente para se ter
uma idéia das proporções, em 2005, os pagamentos
da Bolsa Família corresponderam a algo como um vigésimo
dos pagamentos efetuados pelo INSS.

Finalmente,
é importante destacar que o campo conservador elegeu os direitos
sociais básicos da seguridade social – principal responsável
pela pequena melhoria na distribuição pessoal da renda
– como bola da vez para a reforma da Previdência, que pretende
agendar para 2007, qualquer que seja o presidente eleito.

* Guilherme Delgado é economista do IPEA e membro
da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.