“É o povo quem faz a mudança”, diz Stedile

Por Carolina Rangel e Rafael Martí Entrevista de João Pedro Stedile, integrante da direção nacional do MST, ao Jornal dos Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro. Qual a sua avaliação da Reforma Agrária no governo Lula?

Por Carolina Rangel e Rafael Martí

Entrevista de João Pedro Stedile, integrante da direção nacional do MST, ao Jornal dos Sindicato dos Engenheiros do Rio de Janeiro.

Qual a sua avaliação da Reforma Agrária no governo Lula?

O Brasil vive uma grave crise de projetos para a sociedade brasileira. Nas eleições de 2002, o povo brasileiro votou no Lula com intenção de derrotar o neoliberalismo. No entanto, para ganhar as eleições, o governo Lula fez alianças com parcelas das elites brasileiras que são neoliberais e isso se revelou depois na composição do governo, se tornando um governo ambíguo que tinha ao mesmo tempo ministros de esquerda e neoliberais.

Toda a área econômica ficou neoliberal. Nesse cenário, quase todos os movimentos sociais, tiveram pontos positivos e negativos. No campo específico da Reforma Agrária o nosso balanço é negativo porque as medidas que o governo tomou ao longo de quatro anos beneficiaram muito mais o agronegócio do que a Reforma Agrária de maneira que nós não conseguimos avançar em nada. O governo não teve coragem sequer de atualizar os índices de produtividade que medem se uma fazenda pode ou não ser desapropriada. Os índices usados atualmente são do censo do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) de 1975. No conjunto da política agrícola do governo continuou-se privilegiando a agricultura para exportação. A agricultura brasileira deve em primeiro lugar cumprir a sua função primordial que é produzir alimentos saudáveis e baratos para o povo brasileiro que, infelizmente, continua faminto ou se alimentando aquém das necessidades básicas nutricionais.

A agricultura familiar está sendo contemplada no governo Lula?

O Brasil tem cinco milhões de pequenos agricultores familiares. O governo do FHC desmantelou todas as políticas agrícolas públicas. Elas cuidavam da garantia de preços justos, passando pela assistência técnica aos agricultores, o crédito, o seguro e a garantia de armazenagem. Tudo isso no governo FHC acabou. Hoje, os agricultores familiares estão mais do que nunca a mercê das leis do mercado que sempre prejudica os menores e os mais empobrecidos. O governo Lula não conseguiu recompor as políticas públicas para agricultura familiar. A única área que de fato ele agiu foi no crédito, cujo volume passou de R$ 3 bilhões para 8 bilhões.

Na prática, eles conseguiram atingir apenas 1 milhão e 200 contratos, ou seja, beneficiou cerca de 20% do universo de agricultores familiares, aqueles que já estão acostumados a ir ao banco, que já têm uma agricultura totalmente mercantilizada. Os outros quatro milhões, que são mais pobres e possuem menos terras, continuam desassistidos.

Você já declarou que os transgênicos só servem às multinacionais, mas e se a pesquisa fosse financiada por instituições públicas seria algo positivo, ou o seu princípio, independente de quem estiver financiando é ruim?

Primeiro, há uma questão cientifica que é da biotecnologia, técnicas que se aplicam na agricultura para ir melhorando a qualidade e produtividade das plantas. Ao longo da historia, os biotecnólogos foram sempre os agricultores, que faziam cruzamentos empíricos entre plantas para obter variedades mais produtivas. Mais do que tudo os agricultores e nós do movimento somos os primeiros defensores da biotecnologia. O problema é que nessa etapa do neoliberalismo se formaram grandes empresas, grandes grupos econômicos que combinaram numa mesma empresa outras que vinham da área farmacêutica, empresas que dominavam a comercialização agrícola, o agronegócio e as sementes. É essa a composição que resulta em 10 anos para cá em empresas como a Monsato, Sygenta e Cargill. Essas empresas se apropriaram do conhecimento científico e estão aplicando na agricultura com um objetivo perverso: apenas para buscar lucro. O potencial de desenvolvimento da ciência, na área de biotecnologia, é infinito, mas desde que você coloque como objetivo produzir alimentos saudáveis para toda população. No caso dos transgênicos, estamos fazendo uma propaganda genérica contra para que a população se dê conta de que ela não sabe o que está comendo e pode correr riscos. A Via Campesina, para os casos de transgenia, defende o principio da precaução, ou seja, você faz a transgenia e depois testa ao longo de um grande período no laboratório, em áreas experimentais, para ter certeza de que as conseqüências não serão maléficas nem para a natureza, nem para o ser humano. No caso da soja transgênica, por exemplo, porque nós somos frontalmente contra? Primeiro, porque não é para produzir uma variação de soja mais produtiva. Ao contrário, as variedades produzidas no Brasil pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) são muito mais produtivas do que as da Monsanto. Qual a diferença? É que a Monsanto fez uma transgenia com sua soja combinando necessariamente que a sua semente só produz se aplicar um herbicida Roundop que “casualmente” é fabricada por ela. A base do veneno Roundop é o glifosato que tem conseqüências perversas na natureza. Ele não se destroe e quem vai se alimentando daquela soja, que tem resíduos de glifosato, pode ter graves problemas de saúde. Hoje no mercado 97% dos transgênicos são na verdade uma forma de as empresas venderem outros insumos químicos que o departamento de química dela produz. O que o neoliberalismo trouxe como conseqüência? As sementes não são mais produzidas por uma empresa especializada, mas por uma multinacional que tem departamento de fármaco, química, veneno, armazéns e que controla a Bolsa de Chicago. Por ultimo, só é possível ganhar tanto dinheiro com sementes transgênicas porque essas empresas conseguiram do governo FHC, o que é uma aberração, aprovar uma lei de patentes que introduz na prática a propriedade privada dos seres vivos. Durante cinco anos a Monsanto contrabandeou sua semente porque era proibido plantar e os agricultores foram plantando. Depois que todo mundo plantou ela disse: a semente é minha e vocês vão ter que me pagar agora 60 centavos por quilo. Isso explica porque nessa tremenda crise na agricultura brasileira a Monsanto aumentou o seu lucro do ano passado para este ano em 119%.

Defina as razões da atual crise na agricultura de que tanto reclamam os jornais e os grandes proprietários rurais?

Falamos em crise num setor produtivo altamente capitalista quando os preços, a produção e os lucros caem. O principal não é discutir se há crise ou não, mas é a sociedade dizer o porquê da crise. Temos que explicar para o povo que há uma crise na agricultura brasileira não porque nossas terras são improdutivas ou porque parou de chover. A crise se estabeleceu no Brasil porque o agronegócio está totalmente dependente, a mercê das transnacionais. Eles têm que comprar delas as sementes, os tratores, os fertilizantes e as multinacionais dão o preço dos insumos e do produto. Na safra 2005/2006, o agronegócio teve prejuízo, diminuiu a sua taxa de lucro. Para aonde eles recorreram? Não foram brigar com a Monsanto, as multinacionais, eles correram para o Estado, para que a sociedade brasileira pagasse o prejuízo deles. E nosso governo medroso pagou. A nossa burguesia quer ter capitalismo sem assumir riscos. Para o agronegócio, o governo ampliou os recursos de crédito para eles, rol ou as dívidas e baixou a taxa de juros, de 17% para 8% e quem vai pagar essa diferença é o tesouro nacional. O custo dessa brincadeira, segundo especialistas, vai ser de R$ 12 bilhões ao longo dos próximos quatro anos. Enquanto que para a Reforma Agrária sai R$ 1bi e 200 mil por ano para todos os gastos do Incra, funcionários, carros.

Se Lula for reeleito ocorrerão mudanças?

As mudanças em qualquer sociedade e aqui no Brasil mais ainda, não dependem do governo, mas da sociedade de se organizar e se mobilizar. É o povo quem faz a mudança. A esquerda brasileira cometeu um equívoco ao longo dos últimos anos de ficar projetando para a militância de que bastava eleger o governo de que nós faríamos as mudanças. Muito bem, está lá o Lula e não mudou quase nada. Então é preciso que as pessoas se dêem conta de que não adianta esperar pelo governo. O governo é uma parte da sociedade e é importante que seja progressista. É melhor que continue o Lula do que volte o Alckmin que é a reencarnação do drácula do Fernando Henrique, para usar uma figura religiosa já que ele também é tão religioso. Mas a essência das mudanças na sociedade não vem do governo, mas das energias que a classe trabalhadora consegue mobilizar, se organizando pelos seus direitos.