“Inimigo é a parceria entre latifúndio, agronegócio e empresas transnacionais”

Fonte Fazendo Media Marina dos Santos, integrante da Coordenação Nacional do MST, é filha de um pequeno agricultor catarinense que perdeu a terra na década de 1980 por dívidas, contraídas para desenvolver o plantio. Depois disso, ela e sua família foram para a cidade trabalhar como bóias-frias. Em 1989, decidiu ser freira para poder trabalhar e estudar. Aos 15 anos, foi com um padre a um acampamento e, quando viu a forma de organização no local, entrou para o MST. Quais as diferenças entre o governo FHC e o governo Lula, no que diz respeito ao MST?

Fonte Fazendo Media

Marina dos Santos, integrante da Coordenação Nacional do MST, é filha de um pequeno agricultor catarinense que perdeu a terra na década de 1980 por dívidas, contraídas para desenvolver o plantio. Depois disso, ela e sua família foram para a cidade trabalhar como bóias-frias. Em 1989, decidiu ser freira para poder trabalhar e estudar. Aos 15 anos, foi com um padre a um acampamento e, quando viu a forma de organização no local, entrou para o MST.

Quais as diferenças entre o governo FHC e o governo Lula, no que diz respeito ao MST?

Marina dos Santos: A principal diferença entre os dois governos está relacionada ao tratamento dado aos pobres do campo que realizam ocupações de terras e manifestações pela Reforma Agrária. O governo FHC, por meio dos ministros, dos presidentes dos órgãos da Reforma Agrária e até do presidente da República, tratava a questão agrária e os trabalhadores sem-terra como caso de polícia. Era o mesmo tratamento dos governantes dispensado aos grevistas até o começo do século 20. Dessa forma, legitimavam a repressão da polícia e a violência dos latifundiários. Já o governo Lula tem mais sensibilidade e compreende a importância histórica da luta pela Reforma Agrária do MST. Tanto que nos receberam para audiências e nos convidaram para participarmos de conselhos para discutir a fome no país. Essa é uma diferença fundamental, que não vai acabar com o latifúndio, mas ajuda os movimentos sociais.

Qual a sua avaliação do primeiro mandato do governo Lula em relação ao que se esperava da Reforma Agrária?

Marina: A Reforma Agrária não avançou de forma necessária para desconcentrar a propriedade da terra no país durante o governo Lula. O governo deu prioridade para o modelo agroexportador, baseado na produção de monocultura em latifúndios para a exportação de soja, cana, algodão e eucalipto. Os assentamentos realizados não atacaram o latifúndio. A maior parte foi em projetos antigos, regularização fundiária ou em terras públicas. Mais da metade se concentrou na região da Amazônia Legal, sem estrutura e distante dos principais mercados consumidores. Os objetivos do Plano Nacional de Reforma Agrária do próprio governo não serão cumpridos. Não foram atualizados os índices de produtividade, que determinam se uma terra pode ser desapropriada ou não. Seguem ainda a tabela de 1975, que desconsidera a evolução tecnológica e química do período. Por outro lado, o governo ampliou significativamente o crédito para a pequena agricultura, levou a luz elétrica aos assentamentos, fez o atendimento das famílias acampadas com cestas básicas e ampliou os investimentos em projetos de educação, saúde, cultura e lazer nas áreas de Reforma Agrária.

O que você espera deste segundo mandato do governo Lula? O que a sociedade pode esperar do MST no mesmo período?

Marina: Não temos ilusões em relação ao governo. Acreditamos que o país vai avançar a partir das ações da própria sociedade e do povo brasileiro. Daí a necessidade de que os movimentos populares tenham autonomia, elaboração teórica e capacidade de mobilização. É hora de cobrar e exigir as mudanças políticas que atendam aos interesses do povo. O MST vai seguir com as ocupações de terras que não cumprem a sua função social e com as denúncias da devastação da natureza pelo agronegócio e as transnacionais da agricultura.

Nós e os outros movimentos sociais vamos pressionar pela ruptura com a política econômica neoliberal. Precisamos mostrar para a sociedade os poderosos interesses por trás dos monopólios das terras, das comunicações e do sistema financeiro. Vamos fazer uma grande campanha pela anulação da privatização da Vale do Rio Doce, como determinou a Justiça do Pará. A Vale foi vendida por um terço do seu lucro no ano posterior à venda. É um caso exemplar do significado do neoliberalismo: se retira o Estado de setores estratégicos para o desenvolvimento econômico e soberania nacional e vende-se para o sistema financeiro. O Banco Bradesco controla agora a principal empresa de minérios do mundo por um valor menor do que os lucros anuais da empresa depois da privatização.

Nós queremos discutir propostas, idéias e planos para o campo e para a sociedade brasileira. A visão de Reforma Agrária do MST não se restringe a discutir números de assentamentos. A Reforma Agrária é um novo modelo agrícola baseado na pequena e média propriedade, na prioridade à produção de alimentos para o mercado interno, na criação de uma nova matriz produtiva no campo,n a adoção de técnicas de produção que respeitem o ambiente, sem agrotóxicos. Isso não acontecerá como obra de um partido ou de um grupo político, mas da mobilização do povo brasileiro em torno de um projeto de desenvolvimento nacional, que modifique a estrutura da sociedade brasileira e sustente o crescimento da economia, com criação de empregos, Reforma Agrária, investimentos nos serviços públicos de educação e saúde e distribuição de renda e riqueza.

Quem é o principal inimigo do MST, na sua opinião? Como combatê-lo?

Marina: O principal inimigo do MST é o avanço da parceria entre latifúndio, o agronegócio e empresas transnacionais da agricultura. Atualmente, esse é o maior obstáculo para um processo massivo de Reforma Agrária. O agronegócio está subordinando o uso das terras e os recursos naturais brasileiros às necessidades das transnacionais da agricultura, como a Bunge, Cargill, Monsanto, Stora Enzo, Syngenta e ADM e à especulação no mercado financeiro internacional. As terras devem estar a serviço do povo brasileiro, que precisa de alimentos para mais de 70 milhões de pessoas que não comem o suficiente. Para isso, precisamos de um novo modelo agrícola baseado na pequena e média propriedade. Outro inimigo do movimento e da sociedade brasileira é a falta de um projeto para o Brasil. Um novo modelo agrícola precisa de um projeto de desenvolvimento nacional, que tenha como centro o fortalecimento do mercado interno, a distribuição de renda, a indústria nacional para sustentar a geração de emprego e renda para o povo. O MST está fazendo o seu papel com suas mobilizações populares, nos debates com a sociedade e na formulação de um projeto de desenvolvimento nacional.

Foi divulgado estudo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, que mostra que a Justiça decreta uma média de seis meses de prisão para trabalhadores rurais e no máximo 20 dias para fazendeiros e policiais. Qual a sua opinião sobre isso?

Marina: Esse é um sintoma da incompreensão de segmentos do Judiciário e do Legislativo em relação à questão agrária e à dimensão da concentração da terra, que se constituem numa dívida social e histórica com a sociedade brasileira. O conflito de interesses entre os trabalhadores sem-terra e os latifundiários tem reflexos dentro das instituições do Estado brasileiro. Nesse ano, mais 11 mil famílias foram despejadas e mais de 800 trabalhadores rurais sem-terra foram presos. Ao mesmo tempo, seguem as ações de pistoleiros e milícias dos fazendeiros. Nos últimos 10 anos, os latifundiários e o agronegócio assassinaram mais de 400 trabalhadores rurais e causaram cerca de 12 mil conflitos, relacionados inclusive a trabalho escravo e desrespeito às leis trabalhistas. Os mandantes dos massacres de Eldorado de Carajás, em 1996, e Felisburgo, em 2004, estão soltos.

No campo parlamentar, a CPMI da Terra mostrou a força dos inimigos da Reforma Agrária e dos pobres do campo organizados, com a aprovação de um relatório que quer classificar as ocupações de terra como atos de terrorismo e crime hediondo. A luta dos trabalhadores sem-terra pela Reforma Agrária corresponde à luta pela igualdade social, pelo desenvolvimento do país e pela democracia. Queremos um país democrático de fato, que dê condições políticas e econômicas à livre expressão e organização da população pobre para lutar por seus direitos.

Como é o tratamento dispensado pela grande mídia aos integrantes do MST?

Marina: A mídia hegemônica se especializou em apenas atacar o MST e não se preocupa em analisar por que acontecem as ocupações de terras e os protestos pela Reforma Agrária. Não tem interesse em discutir a fundo o problema agrário e a concentração de terras no país. Com isso, tratam as famílias de trabalhadores rurais sem-terra de forma bastante preconceituosa. Não levam em consideração a situação da vida da população do campo. As ocupações de terra sempre existiram no Brasil e se constituem numa reação social legítima em uma sociedade extremamente desigual, que tem 1,6% dos proprietários, cerca de 35 mil famílias, com 46,78% de todas as terras. Do outro lado, mais de quatro milhões famílias de sem-terra não têm condições de garantir o seu sustento. O agronegócio paga o salário mais baixo da sociedade brasileira, sendo que um assalariado rural raramente ganha mais do que um salário-mínimo.

Qual a posição do MST em relação à democratização dos meios de comunicação?

Marina: O MST defende que o governo cumpra a Constituição, que prevê o equilíbrio entre o sistema privado, público e estatal de comunicação. O Brasil precisa constituir um sistema público de mídia no país, que cria uma alternativa à mídia dos grandes grupos que não querem as transformações do país. Além da concentração da terra, o país é marcado também pela concentração dos meios de comunicação. A Globo é um exemplo do modo como foi constituído o sistema brasileiro de mídia impressa e radiodifusão.

A mídia no Brasil representa a expressão da visão de mundo e posições políticas dos grupos de poder hegemônicos. É o novo intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder, que apaga a perspectiva das classes subalternas, criminaliza os movimentos sociais e passa valores, ideologias e pensamentos contrários ao povo brasileiros e às mudanças sociais necessárias. Por isso, acreditamos que democratizar a comunicação é uma das tarefas do processo de transformação social que a esquerda social precisa empreender no país.

Um projeto de desenvolvimento do país implica na democratização do acesso à terra, da educação, dos meios de sobrevivência e também de comunicação. A democratização da comunicação só será possível como parte de um projeto popular para o Brasil. Não como um fim em si mesmo, mas como medida transformadora necessária que deve estar integrada ao projeto e às lutas populares. Isso não virá sozinho nem desligado do povo, como uma concessão das classes dominantes.

Fale um pouco da importância dos veículos de comunicação do MST, como a revista, o jornal e a rádio.

Marina: A trajetória de mais de 20 anos do Movimento na luta pela Reforma Agrária e pelas mudanças na sociedade nos obrigou a criar nossos próprios meios de comunicação para conseguirmos abrir diálogo com o nosso povo e com a sociedade. Não temos qualquer ilusão em relação à mídia hegemônica, ligada a grandes grupos privados do capital nacional e estrangeiro. Não aceitam movimentos que questionem o modelo econômico e as injustiças sociais.

Por isso, o Jornal Sem Terra tem sido publicado com regularidade e, há nove anos, existe a Revista Sem Terra. Nasceu, três anos atrás, pelas mãos dos movimentos sociais, o Jornal Brasil de Fato. As dificuldades são imensas para manter essas publicações. A falta de recursos é uma limitação concreta para a liberdade de expressão no país. Isso é prejudicial para a democracia, porque liberdade de expressão não é somente liberdade para emitir opiniões, mas ter condições de manter jornais, revistas e tvs que manifestem o pensamento de todos os setores da sociedade. Para isso, precisamos manter a nossa autonomia e construir os nossos meios de comunicação. Aí, sim, poderemos pensar em fazer a disputa de hegemonia na sociedade.

Por fim, gostaria de abrir este espaço para você falar das iniciativas do MST no campo de cultura e da educação, que não têm espaço nos grandes veículos de comunicação.

Marina: O papel do MST, além de fazer a luta pela Reforma Agrária, é organizar o povo para conquistar seus direitos junto ao Estado. A Reforma Agrária não está restrita apenas ao acesso à terra, mas a uma série de outros direitos, como educação e cultura no campo. Desde 1984, o Movimento sempre se preocupou e esteve envolvido com a educação, construindo escolas, desenvolvendo cursos e trabalhando na formação do povo camponês.

Já saíram do analfabetismo mais de 25 mil sem-terra. Os assentamentos do movimento somam mais de 2 mil escolas, onde estudaram mais de 160 mil crianças e adolescentes. Temos 4 mil professores. Para os acampamentos, foram criadas as escolas itinerantes, criadas por causa das dificuldades das crianças e jovens de seguirem os estudos com as mudanças de local. Já funcionam em sete estados, que têm 45 escolas nômades nacionais, 350 educadores do movimento e 3 mil educandos. Passaram por essas escolas 10 mil educandos. Atualmente, nós temos cerca de 30 grupos de teatro. A maioria dos grupos atua em dimensão local, participando de atividades culturais e políticas em suas áreas e cidades vizinhas. O MST tem o teatro como uma forma de reafirmar valores em torno da luta pela transformação do país.

Na área da produção, temos experiências que tiveram bastante êxito e conseguem alimentar o comércio local com alimentos orgânicos e de qualidade. No noroeste do Paraná, temos uma cooperativa que produz e industrializa leite, açúcar mascavo, pão, iogurte e carne, entre outras coisas. Exportam até cachaça para a Europa. Tem outra cooperativa de 230 famílias em quatro estados que produz 22 toneladas de sementes agroecológicas. É uma experiência fantástica, elogiada pelo Ministério da Agricultura. Produzem mais de 60 variedades de sementes de hortaliças sem uso de agrotóxicos. E pelo país todo temos experiência como essas, que mostram a importância e a potência da Reforma Agrária para o desenvolvimento do país.