A questão florestal e a Reforma Agrária

Por Luiz Zarref*

Em 8 de março de 2006, o Brasil passou a ter conhecimento das atrocidades cometidas por uma das muitas vertentes do agronegócio: as indústrias de celulose e papel, que possuem extensas áreas de plantios homogêneos de eucaliptos e pinus. Embora houvesse lutas históricas dos indígenas e organizações ambientalistas contra o Deserto Verde, a ocupação de um viveiro de clones de eucaliptos da Aracruz, no Rio Grande do Sul, realizada pelas mulheres camponesas da Via Campesina, conseguiu projetar para todos os cantos do Brasil a problemática dessa expressão da monocultura e do agronegócio.

Assim como a cana-de-açúcar e a soja, o eucalipto e o pinus receberam um pesado investimento público para serem produzidos como commodities, expandindo-se por grandes áreas do território nacional. Foram criadas linhas de financiamento para pesquisa nas universidades sobre essas espécies; cursos de engenharia florestal para formar mão-de-obra para a recente indústria de celulose e papel; incentivos fiscais estimulavam o reflorestamento com espécies exóticas; financiamentos para estabelecimento de plantas. Tudo hipocritamente coberto sobre o manto do “desenvolvimento sustentável”, da proteção às florestas, da defesa do meio ambiente.

Em todo o mundo, existem 13 milhões de hectares de áreas plantadas com eucalipto. O Brasil possui a maior parcela desta área, com 3 milhões de hectares (de um total de 5 milhões de áreas plantadas com árvores). Projeções das industrias de celulose e papel estimam que em 2010 teremos 13,6 milhões de hectares plantados de eucalipto. O sudeste possui 56% do total da área plantada no Brasil, enquanto o sul tem 27%.

A mesma empresa

As cinco maiores empresas de celulose no Brasil detém 50% de todo o mercado de papel e celulose interno. São elas a Aracruz (ES), Cenibra (ES), Bahia Sul (BA), Klabin Riocell (RS) e Votorantim (SP). No entanto, devemos entender que essas empresas são praticamente do mesmo grupo econômico. A Votorantin, por exemplo, possui 28% da Aracruz.

O apoio estatal é tão forte ao setor, que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), banco público, possui 12,5% do capital da Aracruz Celulose. O Estado brasileiro preferiu investir pesado em um setor que exporta 97% de toda a sua produção (deixando os prejuízos ambientais no Brasil, como o alto consumo de água e a destruição da biodiversidade) e que necessita de um trabalhador para cada 185 hectares, do que apoiar a agricultura familiar, que produz 70% de todo o alimento consumido internamente e utiliza a mão-de-obra de 5 pessoas a cada hectare.

O avanço da área de plantios de eucalipto cresceu vertiginosamente graças também ao avanço das transnacionais sobre as áreas indígenas e quilombolas, onde suas populações foram violentamente expulsas. Essas mesmas empresas se apossaram de milhares de hectares de pequenos e médios produtores, em prol da ampliação de suas áreas plantadas. Também as áreas de latifúndios improdutivos, que deveriam ser destinadas à Reforma Agrária, foram compradas pelas empresas de celulose e papel, transformando-os em grandes maciços florestais homogêneos, aumentado a concentração da terra e poder.

Respeito à natureza

Esse tipo de “manejo florestal” é oposto ao antigo trato que o sertanejo, a agricultora, o camponês, tinha com a mata. As florestas eram fonte de complementação alimentar, remédios naturais, artesanato, lazer, além de ser elemento importante da cultura popular. A produção agrícola e a qualidade de vida das famílias agricultoras estavam intrinsecamente ligadas à floresta, seja pela importância que esta tem no equilíbrio biológico da microrregião, seja no fornecimento de lenha para cozinhar o alimento, madeira para casa, construções, ferramentas.

No entanto, a ação do estado foi perversamente ambígua para os pequenos agricultores. Estimulou a produção por meio do pacote tecnológico da revolução verde e não investiu em assistência técnica preparada para trabalhar o componente florestal, o que proporcionou um impacto negativo razoável nas matas. Por outro lado, investiu em uma legislação bem detalhada e em órgãos fiscalizadores estruturados, que não distinguiam diferenças entre os pequenos e os grandes. O caráter repressor da fiscalização e não educativo determinou a segmentação da propriedade em “mato preservado” e área do lote (a área agrícola e de habitação).

Essa realidade, no entanto, começa a se alterar. Sindicatos e ONGs construíram um numero considerável de experiências sustentáveis, à revelia do descaso público. A integração da propriedade com a floresta foi foco de experiências do norte ao sul do país, consolidando iniciativas como o SAFs (Sistemas Agroflorestais), SASPs (Sistema Aqüífero Sedimentar do Paraíba), sistemas em aléias, agroextrativismo, artesanato, entre outras.

Também não foi diferente no MST. A relação entre a organização e os movimentos com engajamento ecológico, bem como a própria percepção interna de que o modelo convencional de produção é altamente insustentável, levou a organização a uma reflexão sobre as questões ambientais.

Assim nos últimos anos, o MST vem proporcionando um conjunto de experiências ligadas a agroecologia. A agroecologia pode ser entendida como a agricultura consignada à conservação do meio ambiente, aos laços culturais e as relações sociais justas. Na produção agroecológica o agricultor ou agricultura se vê, aos poucos, livres dos agrotóxicos, bem como readquire a posse de suas sementes, reconstrói sua autonomia e entende o sistema complexo que é o seu lote e o assentamento.

Sem Terra e a Agroecologia

Dentro desta nova perspectiva, o MST tornou-se importante sujeito ao desenvolver iniciativas sustentáveis para os agricultores do campo brasileiro. Entre elas, podemos destacar a Campanha Sementes Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade, que estimulou a criação de bancos de sementes e o resgate de sementes crioulas em centenas de assentamentos; a criação da Rede de Pesquisa Agroecológica, composta por uma dezena de centros em todos os biomas, onde desenvolvem-se pesquisas agrícolas com metodologias participativas e buscando aprimorar as técnicas agroecológicas; e a criação dos Centros Irradiadores do Manejo da Agrobiodiversidade, em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, onde 7 centros estão se transformando em unidades demonstrativas da sustentabilidade agrícola, com todo o processo orientado pelos assentados e assentadas. Também devemos evidenciar a criação e coordenação de diversos cursos médio, pós-médio, superior e uma especialização com enfoque agroecológico.

A riqueza da produção agroecológica

Um dos pilares da agroecologia é a diversidade. Diversidade biológica principalmente, ou seja, no lugar dos monocultivos ou cultivos com poucas espécies, deve-se estabelecer lavouras com várias espécies, os chamados policultivos. A diversidade de espécies no cultivo e criações animais é fundamental para o equilíbrio biológico do agroecossistema.

Essa dinâmica de policultivos também interage com a dinâmica florestal. A utilização de espaços comuns, como os Sistemas Agroflorestais (SAFs), para a produção agrícola e florestal, bem como a preservação de áreas florestais nativas, potencializa a produção e cria uma série de vantagens ambientais, como a proteção dos recursos hídricos, o controle de pragas, a conservação dos solos, a diminuição de ventos, entre outras.

É dentro dessa visão de diversidade que MST está construindo o Programa Florestal para as Áreas de Assentamentos. O componente florestal é o clímax da sustentabilidade ambiental, onde todos os organismos vivos e elementos naturais estão em equilíbrio dinâmico. É compreendendo a floresta que o MST busca desenvolver a agroecologia e enfrentar o modelo do agronegócio.

Diante desta realidade o MST assume um protagonismo fundamental para a luta por qualidade de vida nos assentamentos de Reforma Agrária e pela alteração do modelo produtivo nacional. A construção de um programa florestal se faz necessária para identificar as realidades e demandas locais e para apresentar proposições que garantam a integração entre a produção agrícola e a preservação ambiental, a geração de renda e a segurança e soberania alimentar, buscando sempre o manejo mais sustentável possível. As propostas deverão pensar a união com outros movimentos sociais, a parceria com a sociedade civil organizada e o diálogo com o governo para viabilizá-las.

As distintas realidades sócio-ambientais dos estados e das regiões é fator crucial, que será levado em conta na construção do programa florestal. Possuímos assentamentos na Mata Atlântica e nos Pampas, onde o enfrentamento com o monocultivo de eucalipto é acirrado e a fragilidade dos ecossistemas é imperativa; no cerrado e na caatinga precisamos potencializar o agroextrativismo, mas também precisamos entender melhor e propor alternativas de manejo das áreas para produção de lenha e de carvão, que culturalmente são os principais componentes energéticos dos lares e dos pequenos mercados locais; e na Amazônia encontra-se um grande potencial de produtos madeireiros e não-madeireiros (artesanatos, fitoterápicos, frutos).

O MST, por meio de iniciativas regionais, já desenvolve experiências que consolidam alternativas sustentáveis para a boa convivência com os biomas. Exemplos importantes são os SAFs em Ribeirão Preto (SP), em uma região que conhecia apenas a monocultura da cana; o manejo dos babaçuais nos assentamentos do Maranhão; o extrativismo de frutos do cerrado, em assentamentos no Goiás e no entorno do Distrito Federal.

Para conseguir compreender essas diversas realidades, bem como garantir o protagonismo dos estados e regiões, o MST estará incentivando e apoiando iniciativas que discutam e alterem a realidade florestal nos assentamentos. Espera-se que, ao final de 2007, seja consolidado um mapa com as principais iniciativas já realizadas, com as áreas com potencial florestal, parceiros estratégicos e aspectos técnicos que possam subsidiar as equipes de assistência técnica e agricultores e agricultoras. O MST também deverá apoiar de maneira mais incisiva os assentamentos que já apresentam experiências sendo desenvolvidas, potencializando as iniciativas locais e dinamizando a atuação das políticas publicas.

Articulação

O Movimento, em parceria com o Incra e outros órgãos governamentais, realizou uma reunião de trabalho sobre o Programa Florestal Brasileiro. Estiveram presentes representantes Sem Terra de vários estados, contemplando todos os grandes biomas. Eles trouxeram um panorama sobre suas realidades locais, demandas e principais atividades que estão sendo realizadas.

Também participaram setores importantes do governo, como o Ministério do Meio Ambiente, Incra, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Embrapa. Como as iniciativas locais estão bastante atreladas às parcerias com ONGs, grupos de pesquisa e extensão universitária, foram convidadas diversas entidades. Entre as que estiveram presentes, citamos o Sasop (Serviço de Assessoria às Organizações Populares Rurais), da Bahia, o Instituto Carnaúba, do Ceará; e o Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão em Educação e Conservação Ambiental da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo.

A reunião alcançou seus objetivos, que eram produzir um marco teórico e prático sobre as experiências com florestas em assentamentos rurais, bem como iniciar uma coalização entre movimentos sociais do campo, ONGs e governo para realização do Programa Florestal.

As grandes empresas, o capital estrangeiro e os latifundiários desenharam suas propostas e pagam qualquer preço para que elas sejam executadas. Têm em seus princípios a escravidão das espécies florestais, a tomada violenta de terras indígenas, quilombolas e camponesas, a destruição ambiental e o acumulo de capital e de terras. Porém assentados e assentadas, também estão, em conjunto, construindo a sua estratégia. Baseada na biodiversidade, nos conhecimentos culturais, nas relações humanas cooperadas, na agroecologia. Iremos lutar por políticas públicas que atendam à demanda das famílias que vivem nos assentamentos, observando a necessidade de incentivos para produção, acúmulo de conhecimento técnico e possibilidade de escoamento da produção. Assim como os princípios fundamentais da segurança e soberania alimentar e da sustentabilidade ambiental dos assentamentos de reforma agrária.

Luiz Zarref é engenheiro florestal