Segue a calmaria, preocupante…

João Pedro Stedile

Estamos iniciando mais um ano político, assim que o Carnaval passar. Mas, olhando no horizonte, segue uma enfadonha calmaria na conjuntura política brasileira, que em nada parece alterar os rumos da nau e da hegemonia do comando político e econômico do país.

O segundo turno parecia nos trazer novos ventos, com o aumento da disputa política e com a participação mais ativa de diversos setores sociais que se envolveram na luta eleitoral, como uma forma de derrotar a volta da direita neoliberal representada pelo Alckmin.

Passados o período eleitoral e as expectativas de mudanças, muitos voltam a ser céticos diante da mesmice da política nacional. Mas, mais do que buscar culpados ou personalizar as razões dessa situação, precisamos refletir sobre o contexto histórico que estamos vivendo.

Há uma pasmaceira geral na política nacional porque estamos vivendo um longo período histórico demarcado por alguns fatores condicionantes da correlação de forças, que a disputa eleitoral e a reeleição do presidente Lula não conseguiram alterar. Que fatores são esses? Primeiro viemos de um processo de derrota política da classe trabalhadora brasileira, desde as eleições de 1989. Os governos Collor e FHC representaram a consolidação da hegemonia de um setor da classe dominante que abandonou qualquer projeto de desenvolvimento nacional e se subordinou completamente ao capital financeiro e internacional. Disso resultou a “privatização” do Estado brasileiro a esses interesses. E uma política econômica neoliberal, que beneficia apenas tais setores do capital. Essa hegemonia total permitiu ao capital impor novas condições nas relações de trabalho, implementar mudanças tecnológicas que representaram a derrota política da classe operária industrial, que foi a base do reascenso da década de 80 e força principal das lutas que se seguiram.

Houve uma crise ideológica das esquerdas brasileiras, que não conseguiram enfrentar os novos tempos de refluxo e de ofensiva do império estadunidense, após a derrota dos chamados países socialistas. Ou seja, a correlação de forças internacionais também nos foi muito adversa nestes últimos anos. Em conseqüência de tudo isso, se produziu um refluxo do movimento de massas e das lutas sociais que marcou os últimos quinze anos.

Num contexto histórico de derrota política da classe trabalhadora e de refluxo dos movimentos de massas, só se explica a vitória eleitoral do presidente Lula e do PT, como partido depositário das esperanças de mudanças estruturais da sociedade brasileira, porque a classe dominante brasileira se dividiu. Uma parte mais reacionária e talvez burra tentou a todo custo derrubá-lo, usando como arma principal os meios de comunicação. Outra parte, mais hábil e talvez pensando no futuro, preferiu aliar-se e manter seus privilégios.

Dessa aliança e correlação de forças resultou um governo de composição de classes e de ideologia. No primeiro mandato havia uma expectativa maior, pela trajetória histórica do PT e do próprio presidente de que teríamos um governo de esquerda. Nos equivocamos. Agora, o próprio governo assume com transparência e honestidade que quer ser apenas um governo de composição, onde convivam forças de direita, de centro e de esquerda. Onde convivam representações da classe dominante e da classe trabalhadora. E o presidente se apressou a se assumir como centro, como fez questão de explicar, que passara dos 60 anos e era necessário mudar de posição política. Tudo a ver!

Então, caros amigos e amigas, estamos ainda convivendo com um longo período adverso para os interesses do povo brasileiro. E, mais do que lamentarmos, como alguns que preferem ir para casa para ver a banda passar ou, pior ainda, cair no comodismo de que nada é possível mudar, o momento exige muita reflexão, clareza e debate, para que as forças populares, nas suas mais diferentes formas de organização, sejam pastorais, estudantis, setoriais, de moradia, do campo e da cidade, busquem desenvolver ações políticas para enfrentar os verdadeiros desafios que a conjuntura histórica impõe à nossa geração. Sem a pretensão de elencar receitas, mas contribuindo para o debate, nós da Via Campesina e da Assembléia Popular temos refletido muito sobre essa correlação de forças e temos colocado a necessidade de enfrentar como prioridade os principais desafios que temos pela frente.

Os desafios da classe trabalhadora brasileira

O primeiro deles é recuperar o trabalho de base, de conscientização, de organização dos trabalhadores nos seus espaços de vivência, seja no trabalho, escola, moradia, para estimular as lutas sociais. Somente com lutas sociais o povo pode recuperar o sentido coletivo da política, ter forças suficientes para melhorar suas condições de vida, conquistar avanços e alterar a correlação de forças.

Segundo, precisamos dedicar energias para a formação e capacitação de nossa militância social. Em tempos de pasmaceira é necessário dedicar-se ao estudo, à formação, para compreender melhor a complexidade da realidade e encontrar as verdadeiras saídas para os problemas.

Terceiro, precisamos colocar energias na construção e no desenvolvimento de meios de comunicação de massa próprios, como rádios e televisões comunitárias, jornais, revistas, programas de comunicação de todo tipo, sob auspicio dos movimentos e organizações populares, para enfrentar o verdadeiro oligopólio das comunicações sob controle da classe dominante brasileira.

Quarto, precisamos estimular um amplo debate na sociedade sobre a necessidade de um projeto de desenvolvimento para o país. Não basta falar em crescimento da economia. Para quem? Não basta resolver as questões conjunturais. O Brasil precisa de um projeto que dê rumo para seu futuro e que, sobretudo, enfrente seus problemas estruturais e construa uma sociedade mais justa e igualitária.

Quinto, é necessário que todas as organizações populares e pastorais se dediquem com prioridade à conscientização e organização da juventude trabalhadora que vive nas grandes cidades. Será essa geração de jovens, desvinculada dos desvios e vícios do passado, e sonhadora com um futuro mais justo, que poderá se mobilizar, construir um projeto diferente e alterar a correlação de forças na sociedade.

E, finalmente, com as energias voltadas para enfrentar esses desafios, é preciso torcer para que se produza então um novo ciclo de reascenso do movimento de massas. Os tempos são difíceis. Mas mudarão. E os ventos somente mudam pela força das massas.

João Pedro Stedile é membro da Coordenação Nacional do MST e da Via Campesina.