Onde está o sistema público?

Por Dafne Melo

No início de março, o ministro das Comunicações, Hélio Costa, trouxe à tona a criação de uma Rede Nacional de Televisão Pública. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já teria dado carta branca ao projeto que, estima-se, deve custar R$ 250 milhões ao governo em quatro anos. Agora, só faltaria acertar algumas questões com outros ministérios, para a elaboração de um anteprojeto.

Além de emissoras estatais de rádio e TV, o ministro afirma, sem entrar em maiores detalhes, que haverá canais destinados à cultura, educação e às comunidades. A proposta de Costa – que permanecerá com a pasta – foi feita ainda em janeiro.

Já naquela época, militantes pela democratização da comunicação alertavam para a “confusão” feita pelo Ministério das Comunicações (Minicom). Apesar do nome, a proposta não contempla a criação de um sistema verdadeiramente público. Mas, afinal, o que define um sistema como público, privado ou estatal? Em entrevista, o professor da USP, Laurindo Leal Filho, o Lalo, explica os conceitos, analisa experiências em outros países e comenta o projeto do Minicom.

A Constituição prevê a existência e a complementaridade dos sistemas público, privado e estatal de comunicação. Há uma definição legal de cada um?

Laurindo Leal Filho – Não, mas existe uma prática consagrada em vários países, onde fica muito claro o que é cada uma desses sistemas. Aqui no Brasil, talvez como uma forma de protelar a implementação do sistema público, há quem diga que não há clareza. Mas não é difícil definir cada um deles. Os artigos referentes à comunicação da Constituição praticamente não tiveram regulamentação. É fundamental que se defina isso em lei, mas pelo o que eu conheço dos projetos que tramitam no Congresso na área de comunicação, não me lembro de ter visto nenhum projeto nesse sentido.

De acordo com o que se observa na maior parte dos países, como se definiria cada um desses sistemas?

Lalo – Quando se trata de radiodifusão, todos são concessões públicas, apenas institucionalmente operados de forma diferente. O privado é aquele em que as ondas são outorgadas a grupos particulares que prestam esse serviço. É o modelo hegemônico no Brasil, o modelo comercial. São empresas que se candidatam e recebem do Estado o direito de operar essa concessão por um período de 15 anos, no caso das TVs, e de 10 anos, no caso das rádios. São períodos que no Brasil, infelizmente, são renovados sem muita discussão.

O modelo estatal é aquele em que o Estado não abre mão da outorga, mas opera diretamente o canal de rádio ou TV. No caso brasileiro, a nível federal, temos a Radiobras, empresa estatal que possui emissoras de rádio e TV. Temos a TV Educativa (TVE), do Rio de Janeiro, que não é vinculada diretamente à Radiobrás, mas à Presidência da República, mais precisamente, à Secretaria de Comunicação. Esses são dois exemplos no nível federal. Depois, nos Estados, você tem uma série de emissoras dirigidas diretamente pelo governo de cada Estado, por secretarias de Educação, Comunicação, Cultura e, às vezes, até pelo próprio gabinete do governador.

E a pública?

Lalo -É aquela gerida por organizações e conselhos formados pela própria sociedade e não podem ter ingerência da publicidade e nem do Estado. Esse modelo deve ter uma autonomia em relação ao Estado e a iniciativa privada. Na Europa, talvez o modelo mais bem acabado é a (inglesa) BBC. Ela é mantida pela própria população. Todos que possuem uma TV em casa pagam uma cota anual, obrigatória, e é esse dinheiro que a mantém. Seu controle é exercido por um conselho curador eleito e indicado por organizações sociais e, depois, aprovado pelo Parlamento. Em outros países da Europa, você tem emissoras públicas de TV funcionando mais ou menos da mesma forma, como na Alemanha, França e Portugal. Nos EUA, há a PBS e, no Japão, a NHK.

Essa falta de regulamentação para definir o que é público, privado e estatal gera algumas confusões. O atual projeto do Mincom, apesar do Hélio Costa usar a palavra “público”, é uma emissora estatal, certo?

Lalo -Ele chama de Rede Pública do Executivo, o que é uma contradição em termos. é uma rede estatal. É uma redundância do ponto de vista prático, já que o governo já tem sua TV estatal que é a NBR, transmitida pela TV a cabo, cujo slogan é “a emissora do governo federal”. Ou acaba com a NBR e cria outra, ou investe na que já existe para que ela se torne mais abrangente. É uma ação um pouco precipitada do Minicom.

Em suas declarações na imprensa, Hélio Costa sempre diz que também estão previstos canais universitários e comunitários…

Lalo -Isso é uma coisa falada muito por cima um pouco para adoçar a boca daqueles que querem esses canais. O que há de concreto nesse sentido é o Fórum de TVs Públicas, pelo Ministério da Cultura, que começou em novembro e termina agora em abril. Agora, pelo Minicom não há nada de concreto em relação à criação de emissoras comunitárias.

O que estaria por trás desse investimento no setor estatal de comunicação?

Lalo – Há uma série de demandas em relação à radiodifusão, demandas que são legais. A rádio pública, por exemplo, é um dever constitucional. A minha especulação é que, para evitar que surja uma rede pública de qualidade, capaz de competir em audiência com as emissoras comerciais, o Hélio Costa se antecipou do que poderia surgir desse debate com a sociedade [no Fórum das TVs públicas] e criou esse rede que será grande, mas de pouca audiência. Tanto é que a Associação Brasileira de Emissoras de Radio e Televisão (Abert) – que representa as emissoras comerciais e que, geralmente, é sempre contra a qualquer tipo de concorrência – endossou e aprovou a proposta do Hélio Costa. Isso é estranho ou mostra que é uma rede que responde à demanda sem abalar o poder que essas grandes redes têm e que uma rede pública, nos moldes da BBC, poderia abalar.

Em relação às estatais, elas acabam ficando à mercê dos governos. É inegável, por exemplo, que a Radiobrás apresentou uma melhora no governo Lula. Entretanto, nada garante que permanecerá assim num próximo governo. Como resolver isso?

Lalo -No caso brasileiro, a Radiobrás, por exemplo, surgiu como uma agência de notícias do governo e depois foi criando outros mecanismo de divulgação. Acho perfeitamente possível ter uma emissora de Estado sem fazer proselitismo político. Há uma série de informações que não cabem numa emissora pública ou privada, por não serem fatos jornalísticos, mas interessam a setores específicos da sociedade. Então, acho que é um dos papéis da emissora. O Eugênio Bucci [presidente da Radiobras] está tentando deixar como herança algumas regras de conduta. Ele criou um código de conduta interessante que avança nessa direção. Mas não está juridicamente formalizado. O próximo governo pode não aceitar. O que se precisaria era que esse trabalho realizado nessa gestão da Radiobras se tornasse institucionalizado, para garantir uma informação de qualidade e não partidária.

Por falta do sistema público, as estatais acabam tendo importância maior no Brasil?

Lalo – Não se pode generalizar ao falar das estatais porque elas são muito diferenciadas. Elas têm níveis diferentes de relação com os governos, umas mais e outras menos independentes, algumas sofrem de uma dotação orçamentária muito restrita. Agora, quando elas têm verba para arregimentar profissionais de qualidade, conseguem fazer programas de melhor qualidade do que as comerciais. Um bom exemplo disso hoje são as TVs legislativas federais, a TV Senado e a TV Câmara. Elas conseguem fazer programas de música, entrevistas, debates e documentários com qualidade. A TV Cultura, quando teve uma independência política maior e tinha recursos maiores, conseguiu fazer programas infantis que até hoje são reprisados e que inclusive ganhavam de emissoras comerciais na faixa infantil.

No Brasil, há emissoras públicas?

Lalo – Aqui, talvez a que mais se aproxime da BBC seja a Fundação Padre Anchieta que mantém a Rádio e TV Cultura, no Estado de São Paulo. Ela foi criada como uma fundação de direito privado. Essa implicação legal faz com que o Estado não tenha poder para intervir sobre ela. Institucionalmente, não tem nenhum vínculo com o Estado. O conselho curador, como na BBC, é o órgão máximo e é quem elege a diretoria e dá – ou deveria dar – a linha editorial. Há também a Fundação Piratini, mantenedora das emissoras de TV e rádio educativas do Rio Grande do Sul e a TV Ponta Grossa, uma emissora de direito privado ligada ao município. Agora, na prática, essa independência acaba não acontecendo porque o poder público é geralmente o principal – e às vezes único – financiador da emissora, e impõe certas condições: manobra as eleições dos dirigentes, consegue estabelecer maiorias nos conselhos, enfim, interfere e faz com que essas emissoras deixem de ser públicas e se tornem quase estatais, ou totalmente estatais. No caso da TV do RS, por exemplo, o mandato dos dirigentes coincide com o mandato do governador. Então, quando muda o governo, muda a direção. Na Padre Anchieta a coisa é um pouco mais sutil, o mandato dos dirigentes não coincide com o mandato dos governadores, justamente para evitar essa pressão. De qualquer forma, quando muda o governo, os governantes sempre acham maneiras de, através de seus representantes no conselho, fazerem alterações. Os modelos são claros, o problema é que o modelo público no Brasil não deu certo porque os governantes nunca admitiram que essas emissoras, mesmo que financiadas pelo governo, devam ter gestões independentes.

É o conselho curador da BBC que escolhe o presidente da empresa?

Lalo – Sim, é mais ou menos como na Fundação Padre Anchieta, o conselho indica o presidente. Lá ainda há um mecanismo mais democrático: qualquer um pode se candidatar à presidência. Ele apresenta seu currículo e passa por uma série de exames e provas. É um cargo executivo, tem que ser um bom executivo na área de comunicação, não precisa ter relações políticas. A escolha é feita entre todos candidatos.

(Entrevista originalmente publicada na edição 212 do jornal Brasil de Fato)