Correntes teóricas marxistas e as transformações do mundo do trabalho

O marxismo e outras correntes clássicas do pensamento serviram de referencial analítico para o estudo de praticamente todas as transformações e fenômenos registrados no mundo do trabalho no período compreendido entre os finais dos séculos XIX e XX. Essas matrizes teóricas dão conta de explicar hoje essas transformações?

Marcio Pochmann – Não podemos entender o presente como não sendo resultado do passado. Não tenho dúvida de que essa contribuição do pensamento heterodoxo, que vem do século XIX, continua sendo importante e atual para entender o momento presente como um processo histórico. Sem esse entendimento, ficamos com uma visão limitada que inexoravelmente nos leva para uma ação de curtíssimo prazo.

Trata-se de uma contribuição inegável. Entretanto, precisamos entender que a sociedade e o próprio capitalismo são muito dinâmicos. As ferramentas do passado nos servem, mas temos de buscar complementações para termos uma visão atual. É preciso evidentemente que os reformadores e os pensadores sejam contemporâneos dessas transformações.

Ricardo Antunes – Nos últimos três séculos, as ciências sociais operaram com paradigmas – o marxista, o positivista, o funcionalista etc. A própria denominação paradigma é considerada como uma dimensão modelar para explicar uma dada realidade. E assim fomos, cada qual com seu paradigma. Acho essa concepção, em particular nas ciências humanas, um profundo equívoco.

Portanto, não leio o marxismo como um paradigma. Essa coisa de encaixar o modelo dentro da realidade remete à uma tradição epistemologizante do marxismo que é muito distinto, na minha opinião, do rico percurso analítico de Marx. Portanto, não leio o marxismo como paradigma. Eu penso, nesse sentido, que a aquisição original e excepcional de Marx é outra. Ele não tinha um paradigma. Ele dizia: “Eu parto do mundo e tento explicá-lo”. E o meu método será fértil se eu explicar o mundo real. Se eu não explicar o mundo real de modo autêntico e verdadeiro, o meu caminho metodológico está fadado ao fracasso. Por isso é necessário falar no percurso ontológico de Marx.

É surpreendente que ele não tenha nenhum livro em que comece com “questões de método”. Tem vitalidade hoje o pensamento que mergulha no real e o compreende como ele é. É preciso inverter, nas ciências humanas, essa leitura dada pela prevalência paradigmática.

Se eu quero estudar o capitalismo hoje, preciso estudar como ele é. Agora, se você perguntar qual dos autores nodais do mundo contemporâneo mais fertilizou, mais profundamente analisou o mundo real e deixou pistas conceituais e analíticas no mundo real, eu diria que foi Marx. Mas não recorrendo ao que ele escreveu no século XIX e “encaixando” a realidade nisso, para validar o paradigma. Marx ficaria nervoso na sua tumba… Numa brincadeira, em forma de diálogo, com suas filhas, ele disse que seu lema de vida era “duvidar de tudo”. Algo que não combina com modelos ou paradigmas.

Assim concebido, o percurso marxiano de desvendar o real é excepcionalmente forte. Ele diz em um de seus textos primeiros: “o ente é um ente ou um não-ente; o ser é um ser ou é um não-ser”. Eu tenho que entender quem é esse ser que estou a estudar. E, para entendê-lo, é evidente que a construção marxiana é rica. Do mesmo modo, mesmo acolhendo o percurso ontológico de Marx, se eu for estudar o mundo burocrático hoje, me parece imprescindíveis as indicações de Weber.

Se você perguntar: qual o percurso, então, o que nos ensinou Marx ou o que nos ensinou Weber? Aí eu acho uma pergunta legítima. Mas apenas para determinar o percurso que me ajuda compreender o real, e não para encaixá-lo dentro dele. E esse percurso, no meu entender, faz com que Marx não seja um autor nem do século XIX nem do século XX. Enquanto vigir a lógica do capital, a vasta obra marxiana é imprescindível para ajudar na compreensão no capitalismo dos nossos dias.

Nesse contexto, emergiram novos fenômenos de dimensões transnacionais, entre os quais o desemprego em escala mundial – que coloca sobre a mesa problemas que vão desde fenômenos provocados pela imigração até aqueles gerados por distorções dele derivados (violência etc) –, até a discussão sobre a urgência da adoção de medidas que atenuem os efeitos de problemas ambientais, neste último caso em grande medida provocado por meios de produção predatórios. Qual é, na opinião do senhor, a contribuição que a academia pode dar? Ela vem decifrando as transformações? É possível que dessa discussão surjam paradigmas?

Marcio Pochmann–A universidade, de maneira geral, está aberta para a contemporaneidade, muito embora ela também sofra os efeitos de uma realidade em transformação. Acredito até que ela perdeu um pouco daquela unidade que tinha na formação do pensamento. A universidade hoje é uma reprodução de especialidades, que é algo quase inevitável numa sociedade tão complexa. No entanto, a formação de especialistas faz com se saiba cada vez mais de menos coisas. Trata-se de um problema sério e que precisa ser enfrentado decisivamente.

A universidade se ressente da condição de formar quadros que tenham uma visão do todo e não apenas de parte. Essa incapacidade inclusive se reproduz na própria formação. Ela pode tratar, por exemplo, de uma nova pobreza que tem uma totalidade do ponto de vista da saúde, da educação e da habitação, mas estamos formando profissionais com visões muito especializadas em cada uma de suas áreas. Vejo isso como o primeiro desafio.

O segundo é o papel a ser desempenhado pela universidade na construção da nova sociabilidade. Estamos numa sociedade em que a educação passa a ser um elemento obrigatório ao longo de toda a vida. Não é mais uma coisa que está situada tão-somente na categoria de algo que antecipa o exercício do trabalho, concentrada fundamentalmente no segmento infanto-juvenil. Na sociedade do século XX, a educação era dirigida, com as exceções de sempre, para alguém até no máximo 25 anos de idade. Havia uma percepção da educação como valor utilitário – o da educação para o trabalho.

Nessa nova sociedade, que já tem uma família totalmente desfigurada, o que pode construir as bases da nova sociabilidade? Talvez, uma educação que tenha uma atuação transformadora, vinculada ao indivíduo ao longo de toda a sua vida. Certamente ela será diferente daquela que nós temos hoje. Cabe à universidade, e ao sistema educacional como um todo, enfrentar esse desafio.

Ricardo Antunes – Nós vivemos uma época de obliteração da razão. Quando se tem Paulo Coelho como literatura dominante em escala global, a razão bushiana como sendo quase como inevitável, constata-se que o cenário é muito difícil. O pensamento e a razão sofreram uma hecatombe.

A época da Revolução Russa herdou uma fase áurea do que se chamava social-democracia européia, que se inicia com Marx, Engels, e contou anteriormente na França com os socialistas utópicos, além dos economistas clássicos.

Esse pensamento ocidental de envergadura desemboca em 1910 num país como a Rússia que, por uma circunstância muito particular, tinha intelectuais do peso de um Lênin, de um Trotsky. Tínhamos também, em outros países, Rosa Luxemburgo, Lukács e Gramsci, para citar apenas alguns.

Curiosamente eles não foram acadêmicos, embora muitos deles tenham se formado na universidade. E os partidos floresciam como centros do pensamento vivo. Esse experimento desertificou-se, exauriu-se, quer pela stanilização dos partidos, que foi muito profunda, quer pela dogmática dentro deles. Para não falar da desertificação socialdemocrática.

No Brasil, por exemplo, um autor da envergadura de um Caio Prado Júnior, que era do Partido Comunista, nunca conseguiu ver suas teorias assumidas pelo partido ao qual era filiado, porque contraditavam um certo esquematismo que predominava no comunismo oficial.

Foi nesse contexto que as universidades públicas tornaram-se espaços de reserva para um pensamento científico criativo. É claro que meu olhar está muito voltado para as ciências humanas. Eu não seria a pessoa indicada para falar de outras áreas do conhecimento.

Quando os partidos se obliteraram e se enrijeceram, as universidades passaram a se colocar como pólo do pensamento crítico. No Brasil, além de Caio Prado tivemos intelectuais como Florestan Fernandes. Muitos intelectuais, dos melhores pensadores críticos do mundo contemporâneo, nasceram na universidade. Lukács, por exemplo, era professor na Universidade de Budapeste e sempre teve fortes vínculos com o PC húngaro. O intelectual Antonio Gramsci era membro do PC italiano.

Com o desmoronamento do pensamento crítico nos partidos, de certo modo as universidades foram centros receptadores desses valores culturais e científicos. O problema é que elas foram muito abaladas com as mutações das últimas três décadas. Houve a ânsia da privatização, a necessidade de tornaram-se dependentes do mercado, a escassez de verbas. O mercado entrou na universidade e pautou os temários de pesquisa. Tudo isso acentuou um fosso que fez com ela fosse empurrada para uma espécie de universidade da razão instrumental.

Portanto, eu vou com cuidado nessa questão. Se eu disser que a universidade está fora do mundo real, aí não nos resta mais nada. Fora da universidade, por exemplo, muitas pesquisas não encontrariam espaço. Não encontrariam respaldo nos partidos, porque eles não têm mais aquela tradição de investigação e, por razões evidentes, não encontraria espaço nas empresas, onde floresce o “admirável mundo da universidade corporativa”, uma verdadeira contradição em termos.

Estão se formando muitas universidades corporativas, porque o mundo dominante é lócus da razão instrumental. O desafio é resgatar o papel público e científico da universidade, esse espaço laico, plural, fora de qualquer controle político. É imperativo impedir que o mercado se apodere e passe a pautar de vez o mundo acadêmico.

O que a academia pode dar? Muito, mas para isso é preciso preservar seu vínculo público e de defesa do rigor científico, contra quaisquer interesses, que não sejam as reais necessidades humanas e sociais. É possível que dessas reflexões nasçam pesquisas novas? Eu diria que de todas que nós conhecemos hoje, a quase totalidade vem do espaço público. Nas grandes universidades e centros de pesquisas brasileiros, desde o Iseb dos anos 1950, gestaram-se vários projetos para o país. Nós teríamos que pensar numa universidade do século XXI que não fosse um apêndice do mercado. Trata-se de uma questão vital. Se a nossa lógica tornar-se a do mercado e se a nossa visão de ciência passar a ter uma agenda pautada por ele, estamos perdidos. O nosso mestre Octavio Ianni dizia: mercado não rima com humanidade, mas universidade rima com humanidade.

Por isso é imprescindível a luta contra a privatização da universidade. Por isso, os mercados têm desprezo pela universidade pública. Ela não pode ser o espaço da razão instrumental. Ela deve ser o espaço da razão emancipatória.