Zumbi dos Palmares: dez anos de resistência e organização camponesa

Marcos Pedlowski

Quando, na madrugada do agora longínquo 12 de abril de 1997, sob a liderança do MST, centenas de famílias Sem Terra decidiram ocupar pacificamente o complexo da falida Usina São João, é muito provável que as mulheres e homens que participavam daquele momento histórico não tivessem idéia do alcance social de seu corajoso ato em nossa região. Naquele momento, a reação dos setores comprometidos com a manutenção da estrutura social criada pelo latifúndio foi denunciar que a “ordem” estava ameaçada por um bando de forasteiros membros de um movimento exógeno, que estaria chegando a Campos dos Goytacazes para causar caos social e conflitos armados.

O governo federal, através do então Ministro Raul Jungmann, adotou uma posição pendular. Por um lado, não deixava de reconhecer a necessidade da realização da reforma agrária nas terras da Usina São João, mesmo porque seus proprietários haviam acumulado dívidas trabalhistas milionárias antes de falir. Por outro, condenava a atitude dos trabalhadores rurais em ocupar aquelas terras para forçar a desapropriação. Ainda com esta posição ambígua, o Ministro Jungmann veio a Campos em novembro de 1997 formalizar a desapropriação e anunciar a criação do Assentamento Zumbi dos Palmares. Nas palavras do ministro, o governo FHC faria da área um “modelo” de sua política de reforma agrária. Pode-se dizer que, à revelia das ações do governo federal, os anos seguintes mostraram que a afirmação era verdadeira.

Após um início relativamente rápido do processo de parcelamento, o Incra (órgão que é o responsável direto pelo cotidiano de todo assentamento até que o mesmo seja emancipado da tutela do governo federal) postergou a distribuição dos lotes. As pesquisas dos membros do grupo de pesquisa que coordeno na UENF mostraram, já em 1999 e 2000, que a distribuição dos financiamentos básicos para viabilizar a produção agrícola dos lotes foi desigual, com critérios dúbios para definir quais assentados receberiam ou não os financiamentos governamentais e qual montante alocado para cada lote. Também os critérios técnicos para definir os sistemas produtivos que deveriam ser implantados desprezavam o interesse dos assentados e a própria aptidão agrícola dos lotes.

O que deveria ser um assentamento “modelo”, no que tange ao do governo FHC, tornou-se um retrato pálido do que deve ser efetivamente um programa federal de reforma agrária. O único elemento distribuído aos assentados foi o próprio lote de onde deveriam retirar o sustento de suas famílias. As necessidades, muitas vezes apontadas pelos assentados aos representantes governamentais de fornecimento de unidades de beneficiamento da produção, poços artesianos, energia elétrica, manutenção de estradas, estruturas de comercialização, escolas e postos de saúde, nunca foram atendidas pelo governo federal. O pouco de infra-estrutura que chegou ao Zumbi dos Palmares foi pelas mãos da Prefeitura Municipal.

Esta municipalização extra-oficial do Zumbi dos Palmares levou ao cúmulo da estrada principal ter sido pavimentada apenas nos limites municipais de Campos, deixando uma centena de assentados extremamente produtivos à mercê de uma estrada de terra que se torna quase intransitável no período das chuvas, por seus lotes estarem localizados em São Francisco de Itabapoana.

Estes mesmos assentados, do núcleo Zumbi V, ainda convivem com a falta de escola para seus filhos dentro do assentamento, já que a Secretaria Municipal de São Francisco de Itabapoana se recusou a fornecer professores para a escola construída pelos assentados, preferindo ministrar aulas num galpão improvisado.

Na história destes 10 anos, ainda considero o Assentamento dos Zumbi dos Palmares uma vitória da organização camponesa no Norte Fluminense. Em que pese o descaso de diferentes administrações do Incra (inclusive durante o primeiro governo Lula) e a oposição contínua dos latifundiários e seus representantes na mídia falada e escrita no município de Campos dos Goytacazes, as evidências acadêmicas que temos colhido no Zumbi dos Palmares demonstram que os assentados lograram superar imensos obstáculos para implantar sistemas agrícolas que possibilitaram uma notável melhoria na sua condição sócio-econômica e na qualidade de vida da imensa maioria dos assentados. Além de uma impressionante melhora em seus bens materiais, os assentados agora produzem e consomem produtos a que jamais teriam acesso não fosse a decisão de se juntar à luta pela reforma agrária.

No lugar da suposta favela rural muitas vezes anunciada pelos representantes do latifúndio na mídia campista, os assentados do Zumbi dos Palmares têm oferecido um amplo arco de produtos agrícolas, cuja distribuição alcança os limites municipais e estaduais, e até mercados como Belo Horizonte e Brasília. As taxas de desistência, que poderiam ser altíssimas em função do descaso governamental, estão entre as mais baixas do Brasil. Além disso, com o pouco que lhes foi oferecido, os assentados desenvolveram alternativas bastante eficazes para fazer chegar seus produtos às mesas de milhares de famílias, tendo organizado duas feiras onde apenas produtos livres de agrotóxicos são oferecidos para comercialização em Campos dos Goytacazes.

A persistência e a resistência dos assentados do Zumbi dos Palmares nestes 10 anos demonstram que a luta pela reforma agrária é muito mais ampla do que a luta pela posse de um pedaço de terra. Ela envolve um combate amplo pela efetiva democratização da nossa sociedade e pela construção de um país que não seja tão desigual social e economicamente. Os frutos que são tirados cotidianamente do interior dos lotes do Zumbi dos Palmares evidenciam ainda que a reforma agrária também tem o papel fundamental de matar a fome do nosso povo, não apenas por oferecer um espaço de trabalho e produção, mas por permitir que cheguem produtos mais sadios e baratos às mesas de famílias que hoje passam fome em nossa região e em nos cantos do Brasil.

Os assentados do Zumbi dos Palmares são portadores de uma função estratégica e profundamente questionadora da ordem social vigente. Considero que a sociedade campista, e por extensão toda a sociedade brasileira, possui uma imensa dívida social com aquelas mulheres e homens que resolveram desafiar a ordem vigente (muitas vezes sob o cano de armas, cassetetes e bombas), que os relegava ao papel de sub-cidadãos, para se tornarem seres humanos produtivos e engajados politicamente na luta pela transformação social de nosso país.

À luz da experiência vitoriosa do Zumbi dos Palmares, deve-se exigir do poder público (seja municipal, estadual ou federal) o efetivo compromisso com a realização imediata de uma ampla reforma agrária no Brasil. É chegada a hora de sustar o apoio político e financeiro ao latifúndio (seja na sua versão tradicional ou na nova rotulagem de “agronegócio”) e usar o aparato público para operar a mudança estrutural na propriedade da terra de que tanto necessitamos.

Longa vida ao Zumbi dos Palmares! Por uma imediata e ampla Reforma Agrária no Brasil!

Marcos Pedlowski é professor universitário e pesquisador do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico, Centro de Ciências do Homem, Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).