Impacto da escravidão no Brasil

Entrevista especial com Mário Maestri para o Instituto Humanitas

A escravidão entrou em pauta no evento Interpretações do Brasil que discute clássicos da história brasileira através de debates e é promovido pelo Instituto Humanitas, da Unisinos. O professor Mario Maestri discutiu o pensamento de Alexandre Merchant e Robert Conrad sobre os anos de escravidão brasileira, além das relações econômicas da época. Mário Maestri é doutor em Ciências Históricas pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, onde defendeu dissertação de mestrado sobre a África Negra pré-colonial, e tese de doutoramento no Centre de Histoire de l’Afrique daquela instituição, sobre a escravidão no Rio Grande do Sul. Atualmente, é professor do programa de pós-graduação da Universidade de Passo Fundo.

Como o liberalismo se ajustou estruturalmente ao escravismo?

Mario Maestri – Em sua luta pela destruição da ordem feudal, a produção capitalista necessitava de organização social que sancionasse a maior liberdade possível de circulação dos capitais, das mercadorias e da mão-de-obra. Levantava-se, portanto, contra os privilégios e hierarquizações do Ancién Regime, que emperrava o dinamismo da organização capitalista da sociedade. Na esfera político-ideológica, a nova ordem capitalista nascente gerou o liberalismo, doutrina político-ideológica que defendia a autonomia de ação e democratização do poder para as classes proprietárias. Ou seja, a gestão sem privilégios do Estado pelos homens bons da nova ordem, pelos membros das classes proprietárias, com destaque para as novas classes capitalistas. Ainda que o liberalismo propusesse a liberdade civil dos indivíduos, necessária a sua transformação plena em trabalhadores assalariados incapazes de produzirem seus meios de subsistência, sua proposta de liberdade de ação e de igualdade dizia respeito essencialmente ao capital e às classes proprietárias, vistas como a verdadeira e única classe civil. As classes sociais encontravam-se à margem dessas propostas. O liberalismo jamais propôs a gestão pública democrática da sociedade, através do voto universal, por seus membros, não importando a classe social e o gênero. A luta pela democratização, mesmo relativa, da ordem liberal,deveu-se e deve-se essencialmente à mobilização das classes sociais.

A ordem liberal-capitalista não apenas adaptou-se como apoiou-sena escravização do trabalhador. Como Marx lembrava, em “O capital”, a “acumulação primitiva” muito deveu ao tráfico negreiro e a própria Revolução Industrial, na Europa, ensejou a retomada da escravidão colonial, nas América, onde o braço feitorizado produzia, por baixo custo, as matérias primas que necessitava, com destaque para o café e o algodão. Liberais ingleses apoiaram o sul-escravista estadunidense, contra o norte abolicionista, preocupado na manutenção do algodão produzido pelo braço escravizado.

Nas Américas, o pensamento e o regime liberal constituiu elemento para a construção de superestrutura político-ideológica de organização social da produção escravista colonial e, nesse sentido, não capitalista, através da redução teórica do trabalhador à situação da mercadoria e restrição estrita dos direitos civis, aos homens livres, e políticos, aos grandes proprietários. Uma situação que emperrou, por um longuíssimo tempo, o próprio desenvolvimento capitalista na América escravista. Realidade que contribuiu fortemente para a fragilidade das classes sociais que conhecemos, ainda hoje, no Brasil.

Alguns estudiosos acreditavam que havia uma certa propensão para a modernidade nos “novos senhores” do Oeste Paulista, como os chama Sérgio Buarque de Holanda.

Mario Maestri – Como assinala Robert Conrad, em seu clássico “Os últimos anos da escravatura no Brasil”, a destruição da ordem escravista deveu-se, de forma geral, à concentração da mão-de-obra escravizada no sudeste cafeicultor, devido à interrupção do tráfico transatlântico de trabalhadores escravizado, em 1850, e à conseqüente explosão do preço do cativo, motivada pelas necessidades de trabalhadores da cafeicultura, galvanizada pelo mercado mundial. A disponibilidade, sobretudo no Nordeste, de populações pobres livres, obrigadas a vender a força de trabalho por preço vil; a incapacidade de escravistas de aplicarem produtivamente seus cativos e muitas regiões do Brasil e outros fenômenos ainda não suficientemente elucidados, ensejaram uma enorme venda e concentração de cativos na cafeicultura, com a conseqüente desescravização de importantes regiões do Brasil. Esse fenômeno pôs fim ao consenso escravista nacional. Em um sentido, conjuntural, a escravidão foi destruída devido à convergência da ação do movimento abolicionista radicalizado com os próprios trabalhadores escravizados, que destruíram literalmente a ordem escravista, através do abandono maciço das fazendas, sobretudo paulistas, a partir de 1887. Um movimento que estremeceu a própria produção charqueadora pelotense, dependente ainda do braço do cativo e do liberto sob condições de prestação de serviços sem pagamento.
O abolicionismo dos fazendeiros do Oeste paulista é uma legenda historiográfica que apresenta o fazendeiro e o escravista paulista como o demiurgo da própria superação da escravidão, roubando a cena ao trabalhador escravizado, que desorganizou em forma irremediável a produção, devido à verdadeira insurreição geral incruenta dos últimos meses da instituição. Essa legenda constrói lugar de destaque na história regional e nacional para setor social que lutou, como registra Robert Conrad, na obra assinalada, assim como alguns outros autores, apoiados em documentação primária irrefutável, até os últimos momentos, em defesa da escravidão, e não por sua destruição.

Necessariamente, os cafeicultores não deveriam considerar o trabalho escravo como menos rentável do que o trabalho livre? Por que não o fizeram?

Mario Maestri – Até os últimos momentos da escravidão, o trabalhador escravizado não era apenas mais rentável como a única solução disponível, nas condições históricas da época e no contexto da produção latifundiária-exportadora. O trabalhador livre disponível na região era insuficiente para as necessidades dos cafeicultores e simplesmente não se empregaria nas fazendas cafeicultoras pela remuneração miserável entregue aos cativos, sob a forma de alimentação, vestuário, moradia etc., mesmo acrescida a ela a inversão inicial realizada pelo negreiro ao comprar o trabalhador. O homem livre pobre conhecia condições de existência melhores na malandragem ou vivendo como caboclos, nos interstícios da sociedade de então. A dissolução revolucionária da escravidão, pela luta abolicionista radicalizada associada à ação dos trabalhadores escravizados, criou momento de difícil transição, para os cafeicultores, que os obrigou a contratar, como colonos, em condições que favorecia, ainda que relativamente, o trabalhador imigrado recém-chegado.

A Abolição acompanhada do subsídio estatal dado à vinda dos imigrantes não teria sido uma espécie de indenização que o governo imperial, e depois o republicano, concedeu aos senhores?

Mario Maestri – Sobretudo os escravistas proprietários de terras cansadas exigiam histéricos a indenização de suas propriedades humanas, consagradas pela Constituição, quando da abolição da escravidão. A administração imperial chegou a discutir essa indenização, que hoje nos parece paradoxal, mesmo quando concordamos na justiça da indenização dos imensos latifúndios, por motivo de reforma agrária. Porém, os setores proprietários mais dinâmicos, que dominavam o poder central, preferiram investir os recursos da Estado monárquico e a seguir republicano na importação de trabalhadores livres, necessários para, inicialmente, suprir as necessidades dos cafeicultores e, a seguir, contribuir à conformação do exército rural e industrial de reserva que passou a deprimir, como deprime ainda hoje, vilmente, o valor da força de trabalho no Brasil, e a própria capacidade social de mobilização.