A quem interessa a energia do Madeira?

A construção das usinas no Rio Madeira tem gerado uma intensa discussão. Em entrevista, Luis Fernando Novoa Garzón, sociólogo e mestrando em Ciências Políticas na Unicamp, afirma que a construção “é tudo, menos a tentativa de fornecer e ampliar o abastecimento energético do país. Porque, do ponto de vista das alternativas que nós temos, existem saídas a curto prazo muito menos impactantes e muito mais baratas do que as Usinas do Rio Madeira.

A construção das usinas no Rio Madeira tem gerado uma intensa discussão. Em entrevista, Luis Fernando Novoa Garzón, sociólogo e mestrando em Ciências Políticas na Unicamp, afirma que a construção “é tudo, menos a tentativa de fornecer e ampliar o abastecimento energético do país. Porque, do ponto de vista das alternativas que nós temos, existem saídas a curto prazo muito menos impactantes e muito mais baratas do que as Usinas do Rio Madeira. Por exemplo, a repotencialização das velhas usinas, os programas de eficiência energética e, também, as pequenas centrais hidrelétricas.” Ele também é membro da Ong ATTAC e do Grupo de Trabalho de Serviços e Investimentos da Rede Brasileira de Integração dos Povos fala sobre o tema.

O senhor afirma, em artigo, que as Usinas do Rio Madeira não são alternativas corretas para o que chamam de “isolamento da região amazônica”. O que o senhor acredita realmente estar em jogo em relação à construção dessas Usinas?

Luis Fernando Novoa Garzón – É tudo, menos a tentativa de fornecer e ampliar o abastecimento energético do país. Porque, do ponto de vista das alternativas que nós temos, existem saídas a curto prazo muito menos impactantes e muito mais baratas do que as Usinas do Rio Madeira. Por exemplo, a repotencialização das velhas usinas, os programas de eficiência energética e, também, as pequenas centrais hidrelétricas. Isso tudo coloca sob suspensão esta prioridade que tem sido dada, no sentido de saber o que se esconde por detrás do projeto. Em primeiro lugar, sabemos que esse projeto tem caráter internacional, pois ele se interliga com o megaprojeto da Iniciativa de Integração de Infra-estrutura Regional Sul-americana, financiada pelo BID, e que quer fazer da região um corredor bio oceânico de exportações, lidando com o Madeira, então, como um eixo de interligação, não só para o Atlântico, como é hoje, mas também para o Pacífico, atravessando uma área que ainda está em processo de consolidação. Essa área é muito frágil, do ponto de vista ecológico, sem a presença do Estado, o que, portanto, significa transferir a soberania sobre um território estratégico, não só para o Brasil como para os países da América do Sul.

Fernando Gabeira afirmou que as usinas do Rio Madeira seriam uma alternativa muito melhor do que trazer o nuclear para o Brasil. Como o senhor vê essas questão? Qual seria a melhor forma de distribuir energia para todos sem que isso “mexesse” com nosso meio ambiente?

Luis Fernando Novoa Garzón – O problema é quando se coloca alternativas desse tipo é como se não tivéssemos saída alguma. Há uma manipulação muito grande da informação e até mesmo da comunidade científica, no sentido de que se ofereça à sociedade brasileira alternativas que, no fundo, são do grande empresariado e que requerem energia em larga escala, a curto prazo, sem medir conseqüências, sem compromisso com a população brasileira e com o projeto nacional de desenvolvimento. Há um compromisso desse empresariado apenas com seus próprios interesses, no sentido de aumentar a escala de exportações e de ocupar os seus nichos de mercados, sem nenhum tipo de reciprocidade com o país. A discussão sobre a matriz energética e sobre a questão do abastecimento energético é feita de forma enviesada, ou seja, ela já vem contaminada de interesses particulares e de projetos específicos de grandes grupos econômicos, que se valem de um governo enfraquecido, que não tem mais capacidade de representar a complexidade do país e que, então, nos impõe uma pauta que não é a do povo brasileiro.

E qual seria essa pauta do povo brasileiro?

Luis Fernando Novoa Garzón – Nós não vivemos em função da soja, da celulose, da mineração. A população brasileira vive de seus pequenos negócios, da sua agricultura familiar. A grande parte da população brasileira depende de mercado interno, de microcrédito, de serviços públicos, de capacitação tecnológica, ou seja, depende dos temas que não são prioridades para o governo. A grande questão é: para quem interessa essa energia proveniente do Rio Madeira? A que setores é dada a prioridade de abastecimento energético? O que se vê nessa discussão é a tentativa de fazer com que o país sacrifique seu imenso potencial natural e suas imensas bacias hidrográficas, em função de interesses imediatistas dos setores agroexportadores. E isso coloca em risco a integralidade das nossas bacias, as nossas águas. Ou seja, nós estamos oferecendo, como país, uma espécie de subsídios verdes. Nossos recursos naturais e nossa natureza são utilizados como mecanismos de “barateamento” dos custos operacionais das grandes empresas, o que representa perdas irreversíveis para a população.

Qual seria a melhor forma de distribuir energia para todos sem que isso denegrisse nosso meio ambiente?

Luis Fernando Novoa Garzón – Precisamos discutir, com maior pluralidade e transparência, a matriz energética brasileira, de forma que possamos equilibrar essa matriz e, de fato, priorizar as energia alternativas. O Brasil tem um enorme potencial para captar energia solar e eólica, pela nossa posição geografia e pela extensão do território. Nós temos, também, soluções regionais e locais que passam pelo uso da biomassa e de pequenas centrais hidrelétricas. Ou seja, é possível pensar a energia e o desenvolvimento a partir de matrizes locais, a partir de uma composição e de uma agregação e de interesses mais amplos. É um processo de construção de um novo processo de decisão. Porque hoje nós vemos simplesmente as decisões sendo tomadas nos círculos de maior concentração econômica. Então, o Ministério das Minas e Energia e a Casa Civil acabam adotando um planejamento energético, que é feito em grupos muito concentrados e que, portanto, não refletem as prioridades do país como um todo, mas, ao mesmo tempo, acabam sendo vocalizadas como se fossem do país.

Como o senhor vê a atuação do governo Lula em relação a questões como a construção das usinas do Rio Madeira e da transposição do Rio São Francisco?

Luis Fernando Novoa Garzón – Isso se reflete nessa prioridade que o PAC apresenta, pois ele tem a lógica do crescimento que está nesses projetos dos setores que se tornaram dinâmicos em meio a um processo de fragmentação de desmonte do país. O PAC é um programa perverso, desse ponto de vista, pois reforça os que já são fortes e não estabelece nenhum tipo de prioridade para resgatar os setores que encadeiam a economia nacional, ou seja, voltados para o mercado interno, para os mercados regionais, para processos de agregação de valor e multiplicação de talentos, de capacidade, de geração de tecnologias. Assim, ele é um programa que procura ampliar a escala dos setores que já têm os seus pontos de venda no mercado mundial, especialmente o agronegócio e o setor mineral. Então, é uma energia que reforça a concentração e esse modelo que vigora. Nossa crítica não é a meramente ambientalista, mas a que critica tal modelo. Assim, possibilidades econômicas são suprimidas na medida que se estabelece um uso predominante, absoluto, de funcionalização do território a serviço dessas grandes corporações, retirando da população a possibilidade de que ela possa usar o seu território, a sua região, para o ecoturismo, para a agricultura familiar, para a pesca, ou seja, alternativas que mantém essas populações há tanto tempo e que são, de fato, sustentáveis e permanentes. Enquanto isso, essas grandes corporações geram surtos de crescimento, favorecendo grupos voltados para o mercado externo e deixando muito pouco de retribuição.

Como seria uma versão do PAC que favoreceria o povo brasileiro?

Luis Fernando Novoa Garzón – Nós precisamos retomar o crescimento do país. De fato, essa é uma demanda de grande parte da população brasileira, que vê o País sobre uma camisa de força estabelecida desde o início dos anos 1990, em razão do sistema econômico internacional, e vem mantendo o País sob baixo crescimento. Essa é uma avaliação conjunta. A questão é: qual o modelo de crescimento? Nesse sentido, o programa que a sociedade brasileira esperaria é um que trouxesse investimentos maciços na infra-estrutura social, o que é um direito da população brasileira. Esse programa atual não desenha um futuro promissor para o país, à medida que ele fortalece um modelo que vem aprofundando a concentração de renda e rebaixando o perfil tecnológico-econômico no mercado mundial. O Brasil está se transformando num país especialista em matérias-primas e produtos manufaturados de baixo valor agregado. Esse é o perfil que o Brasil está desenhando através do PAC.

Em sua opinião, quais são as principais implicações sociopolíticas que essas usinas ocasionarão à região?

Luis Fernando Novoa Garzón – Do ponto de vista político, para nós, é uma perda de controle territorial, representado pela Amazônia. Também é uma perda no sentido de falta de controle sobre nossas águas. Esses grandes projetos acabam impondo suas próprias regras. Então, à medida que um projeto como esse se instala, cria um vazio institucional, pois cria novos ordenamentos. E o pior é que esse ordenamento é definido pelo setor privado, como ficou claro quando o Ministro de Minas e Energia anunciou exatamente que o leilão não aceitará a participação de estatais e que o Estado terá um papel subsidiário no projeto, no sentido apenas de financiamento. O projeto estará a serviço do mercado e do setor privado. Isso só comprova que a região vai ficar à mercê de interesses particulares, com muito pouca interferência do setor público, no sentido de que estamos transferindo prerrogativas que deveriam ser do Estado e da sociedade para o setor privado. Isso significa transformar um bem público, no caso, um rio, em mercadoria, sem que sequer mediações políticas, sociais e institucionais seja admitidas. Essas exigências estão sendo simplesmente minimizadas, relativizadas no estudos de impacto ambiental e, se aprovadas, trazem a consolidação de um processo de licenciamento ambiental padronizado, no qual a sociedade não terá mais suas salvaguardas garantidas. Além disso, existirão apenas os interesses dos mercados e aquilo que esses consideram como conveniente e aceitável assumir como custo social-ambiental.

Fonte: IHU On-Line