Igualdade e desigualdade na China

Para alguns, a China traça o caminho de retorno total ao capitalismo. Para outros, porém, o país se encontra na fase inicial de construção socialista. Em quem acreditar?

Por Wladimir Pomar*

A China está na pauta de amigos ou inimigos. Tudo pelo fato de, a toda hora, nos depararmos com produtos chineses. E porque seu Produto Interno Bruto (PIB, que é a soma das riquezas produzidas pelo país) quadruplicou entre 1980 e 2000, e deve quadruplicar outra vez, entre 2000 e 2010. No ano passado, alcançou a cifra de US$ 2,7 trilhões (cerca de R$ 6 trilhões) pela paridade cambial e cerca de US$ 10 trilhões (aproximadamente R$ 22 trilhões) pela paridade do poder de compra.

Mas a China ainda parece um mistério. Setores da esquerda, da mesma forma que setores da direita, dizem que o socialismo também teria fracassado lá. Isso porque ela não teria proporcionado igualdade a toda a sua população. E porque o capitalismo, inclusive o internacional, teria renascido, tornando-se o setor predominante da economia e da sociedade chinesa.

Os comunistas e socialistas chineses percorreram um longo caminho, de quase meio século de guerras civis e de uma guerra de resistência contra o Japão, até conseguirem implantar um governo democrático e popular e iniciar a construção socialista. Depois, por outros 15 anos, esforçaram-se para industrializar o país e desenvolver suas forças produtivas através de suas empresas estatais e das empresas coletivas (cooperativas) urbanas e rurais.

Descontentes com o ritmo de seu desenvolvimento econômico e social e sob pressão do sentimento igualitário do campesinato e das camadas pobres urbanas, acharam que os problemas da construção socialista eram devidos aos restos da propriedade privada na sociedade chinesa. A partir daí, ingressaram numa das maiores tentativas históricas de implantar uma igualdade massiva, a chamada Revolução Cultural Proletária (1), por outros dez anos. Após isso, avaliaram suas experiências e suas tentativas de construção socialista e, para promover o desenvolvimento das forças produtivas, decidiram realizar uma grande retirada estratégica, admitindo a desigualdade social e diferentes formas de propriedade, entre as quais a propriedade privada capitalista nacional e estrangeira.

Para muitos comunistas e socialistas – assim como liberais – espalhados pelo mundo, esse é um caminho de retorno total ao capitalismo. Para os comunistas chineses, porém, a China se encontra na fase inicial de construção socialista.

Em quem acreditar? Para onde realmente está marchando a China? Para responder a essas perguntas, mesmo de forma simplificada, talvez seja indispensável voltar um pouco na história, comparando a China de 50 anos atrás com a China de hoje, para tentar descobrir as tendências predominantes de sua evolução.

Igualdade

Ao proclamar sua República Popular, em outubro de 1949, a China possuía cerca de 500 milhões de habitantes. A maioria estava nas áreas rurais, vivendo em regime de subordinação quase feudal. A indústria era rudimentar, grande parte dos trabalhadores urbanos dedicando-se ao artesanato. A economia e a sociedade eram dominadas pela associação do capitalismo estrangeiro com a burguesia comercial e com os senhores de terras e de guerra chineses. Havia uma imensa igualdade na pobreza e na miséria, entre os camponeses e os trabalhadores urbanos, e uma brutal desigualdade entre estes e as burguesias estrangeira e chinesa.

A reforma agrária e a reorganização da economia, com a expropriação das propriedades estrangeiras e o estabelecimento de empresas estatais e coletivas entre 1950 e 1953, melhoraram a situação dos pobres e miseráveis e reduziu as desigualdades. Mas elas persistiam, porque havia os setores ricos, como os camponeses abastados, nas zonas rurais, e os industriais e comerciantes nas zonas urbanas.

Também persistiam no território chinês focos de resistência e sabotagem do antigo regime. A reforma agrária limitara-se aos han (2), enquanto se mantinham formas de exploração servil e escravista sobre os camponeses de outras etnias, como no Tibet. E o Exército Popular de Libertação fora impedido de tomar a ilha de Taiwan, em virtude da proteção da 7ª. Frota americana aos exércitos do Antigo Regime, em retirada.

Os Estados Unidos também haviam conseguido impor um vasto bloqueio econômico, político, diplomático e militar à nova China. E depois, com a Guerra da Coréia (3), obrigou-a a mobilizar recursos materiais, e mais de um milhão de voluntários para lutar ao lado dos coreanos do norte, contra as tropas dos Estados Unidos e de outros 14 países.

Numa situação como essa, os camponeses abastados e os burgueses chineses tentaram tirar vantagens. Como reação, nas zonas rurais desenvolveu-se uma intensa luta de classes, que desembocou no processo de cooperativização agrícola e, mais tarde, na formação dos grupos e brigadas de produção, e das comunas populares. Através dele, os camponeses pobres subordinaram os camponeses abastados e médios, e estabeleceram a igualdade no trabalho e nos ganhos.

Nas zonas urbanas, os burgueses perderam a queda de braço com o governo em suas tentativas especulativas, foram à bancarrota, tiveram que vender suas empresas para o Estado ou para coletivos de trabalhadores e passaram a ser trabalhadores. Assim, estabeleceu-se também uma certa igualdade nas zonas urbanas chinesas.

O problema é que essa igualdade era por baixo, igualdade na pobreza. Toda tentativa posterior para desenvolver as forças produtivas, intensificar a geração de riqueza e redistribuir tal riqueza entre a população não conseguiu mudar estruturalmente a situação de igualdade por baixo. O Grande Salto Adiante (4), entre 1958 e 1962 e, depois, a Revolução Cultural Proletária, entre 1966 e 1976, conseguiram alguns avanços produtivos, mas inferiores às necessidades do atraso histórico da China e de seu crescimento populacional.

Assim, em 1978, já com mais de um bilhão de habitantes, a China tinha 70% de pobres e 30% vivendo abaixo da linha da pobreza. A persistência desse tipo de igualdade acabaria degradando a legitimidade da revolução e das promessas de construção socialista. Não por acaso, a Revolução Cultural Proletária e sua perspectiva de alcançar a riqueza social através de uma massiva mobilização ideológica e política e redistribui-la igualmente a todos, se esgotara. Além de haver fraturado profundamente a sociedade, o governo, o partido comunista e os partidos democráticos, não conseguira realizar o esperado desenvolvimento econômico e social.

Desigualdade

Que outros caminhos a China poderia ou deveria seguir? Como desenvolver suas forças produtivas e, ao mesmo tempo, redistribuir proporcionalmente a riqueza gerada por aquele desenvolvimento, nas condições de atraso econômico e social ainda existentes?

Os comunistas e socialistas chineses decidiram retomar as previsões de Marx de que a transição do capitalismo ao comunismo só poderia ocorrer em sociedades onde as forças produtivas já tivessem um alto grau de desenvolvimento. E retomar, também, as propostas de Mao Tsé-Tung, em seus trabalhos sobre a Nova Democracia, em que apontava a necessidade de convivência e luta, por um largo período, de diferentes formas de propriedade, inclusive privadas, para a construção socialista na China.

Em outras palavras, decidiram realizar uma grande retirada estratégica, para resguardar as forças que restavam, e acumular novas forças com vistas aos embates futuros. Em termos gerais, fizeram como na Longa Marcha, que se seguiu à sua derrota militar, em 1935, frente à quinta campanha de cerco e aniquilamento dos exércitos do Guomintang (5), que os obrigou a abandonar sua base guerrilheira central, no sul do país. Transformaram a marcha de salvamento de suas tropas em marcha de deslocamento para as regiões do norte do país, com o objetivo de enfrentar a iminente ofensiva geral japonesa contra a China.

Com isso, transformaram a retirada militar em ofensiva política, levaram o Guomintang a aceitar a aliança nacional para a guerra de resistência contra o Japão, tornaram o exército derrotado de 30 mil homens maltrapilhos num exército de três milhões de homens vitoriosos. Além disso, foram reconhecidos pelo povo chinês como o principal combatente contra o invasor estrangeiro e, na guerra civil que se seguiu, conquistaram a vitória contra o exército de oito milhões de homens do Guomintang, apoiado pelos Estados Unidos.

Na atual retirada estratégica, os comunistas e socialistas chineses têm adotado combinações estratégicas e táticas que lhes permitam desenvolver as forças produtivas, aí incluídas as ciências e as tecnologias, gerar riqueza, redistribuir tal riqueza de forma menos desigual, e elevar o nível educacional e cultural de toda a população.

Ao mesmo tempo em que dão grande importância ao papel do mercado para o cálculo econômico e a determinação dos preços, dedicam papel importante ao Estado e ao planejamento macroeconômico e social, de modo a orientar o processo de desenvolvimento e corrigir os desvios do mercado. Ao mesmo tempo em que desenvolvem as ciências, as tecnologias e a inovação tecnológica, permitem e estimulam o uso das tecnologias atrasadas e tradicionais, de modo a manter grande número de empregos.

Ao mesmo tempo em que atraem capitais privados estrangeiros e permitem a expansão dos capitais privados nacionais, modernizam e tornam competitivas e rentáveis suas empresas e corporações estatais, utilizando-as como instrumentos de política industrial. Ao mesmo tempo em que eliminaram o pleno emprego e o emprego vitalício, criando o mercado de trabalho, universalizam paulatinamente o seguro desemprego, a aposentadoria e as pensões, e criam uma série de mecanismos estimuladores de novos negócios e novos empregos.

Essas e outras combinações estratégicas e táticas permitiram à China gerar, no espaço de 26 anos, o terceiro maior PIB do mundo, pela paridade cambial, e o segundo maior PIB do mundo, pela paridade de poder de compra. E transformar a estrutura social de 700 milhões de pobres e 400 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, existente em 1980, numa estrutura social, em 2006, de 16 milhões de pessoas ainda vivendo abaixo da linha da pobreza, 500 milhões de pobres, 500 milhões vivendo num patamar de classe média baixa, e cerca de 350 milhões vivendo em nível de classe média e alta.

A China implantou, assim, um processo de desigualdade social. Porém, ao contrário do que ocorre na maioria dos países capitalistas do mundo, um processo em que existe um acesso constante dos níveis inferiores aos níveis superiores de riqueza. É evidente que esse é um processo de alto risco, no qual o Estado terá que manter um constante monitoramento para que o enriquecimento ocorra realmente em ondas e seja evitada uma grande polarização na desigualdade econômica e social. Pergunta-se: para um país que saiu de um profundo atraso econômico e social, seria possível estabelecer a igualdade a curto prazo e evitar um caminho desse tipo?

Perspectivas

Entre 2006 e 2010, a China terá que resolver o principal problema atual da sua economia, que reside na superprodução de sua indústria, em contraste com uma demanda interna efetiva insuficiente. As taxas de investimento acima de 40% do PIB ao ano em capitais e tecnologias têm imprimido um ritmo exagerado ao crescimento chinês de 9% a 10% ao ano. O consumo, por seu turno, embora tenha aumentado muito, tem crescido mais lentamente pela dificuldade em gerar cerca de 10 milhões de novos empregos anuais e pelas disparidades de renda entre agricultura e indústria entre as populações rurais e as urbanas e entre as diferentes regiões, em especial entre o leste e o oeste do país.

Por isso, ao invés de utilizar a grande quantidade de capitais excedentes, hoje existentes na China, apenas para ampliar a produção e o lucro, o novo plano qüinqüenal do governo chinês pretende direcionar grande parte deles para aumentar o padrão de vida das populações de menor renda e, portanto, elevar o consumo interno. Os investimentos anuais serão reduzidos para cerca de 30% do PIB e destinados prioritariamente para aumentar a infra-estrutura rural e urbana, universalizar os serviços públicos nas áreas rurais, reduzir as disparidades regionais, impor um salto na conservação e recuperação do meio ambiente, elevar a um novo nível a estrutura científica e educacional, desenvolver os recursos humanos e reformar as estruturas industriais obsoletas.

Os investimentos nas áreas rurais pretendem desenvolver os recursos humanos, sendo orientados para saneamento, moradia, educação e saúde, assim como para a infra-estrutura científica e tecnológica da agricultura e da pecuária. Tudo de modo a aumentar a produtividade da terra, garantindo uma melhor renda às famílias, implantando em bases sólidas e avançadas a pecuária leiteira e de corte, intensificando os programas de reflorestamento e conservação das águas e, portanto, elevando o consumo no campo.

O plano também tem em vista intensificar o consumo geral através do corte dos impostos e taxas (o que vem sendo realizado na agricultura desde 2005), da revitalização do emprego, do aumento da renda individual e familiar, da diversificação dos produtos e da proteção aos direitos dos consumidores. O atual plano chinês é, pois, um plano de ajustamento. Procura reforçar o mercado doméstico para enfrentar qualquer turbulência no capitalismo global. No final, deve ampliar a classe média e alta para algo em torno de 520 milhões de pessoas e a classe média inferior para alguma coisa em torno de 550 milhões de pessoas, enquanto deve reduzir o número de pobres para menos de 300 milhões.

Dizendo de outro modo, não há qualquer intenção imediata de implantar o igualitarismo na distribuição das riquezas. Mas existe o objetivo de elevar o padrão de vida das grandes camadas da população chinesa, evitando disparidades que rompam a atual estabilidade social e política e criem distúrbios no desenvolvimento de longo prazo. Realizar isso não é uma tarefa fácil, tendo em conta o passivo histórico de distorções econômicas, sociais e ambientais acumuladas pela China em seus mais de cinco mil anos de existência.

Esse país ainda tem muito a fazer em termos de construção civil, meios de transporte, combustíveis renováveis, motores limpos, técnicas de economia de energia, silvicultura, pecuária de leite e corte, técnicas de conservação e recuperação do meio ambiente, técnicas e equipamentos para melhoria de suas instalações industriais, exploração racional e conservação de recursos naturais, além de desenvolvimento científico e tecnológico. A China continuará tentando achar uma solução para superar a contradição entre seus limites físicos para ampliar a produção agrícola e a crescente demanda de grãos e alimentos naturais e industrializados, carnes, sucos, frutas frescas e secas, café e outras bebidas, cujo consumo cresce com o acesso de novas camadas com poder aquisitivo maior.

Assim, enquanto persistirem lacunas sérias no desenvolvimento de suas forças produtivas, a China deve se aproveitar de todas as combinações possíveis de formas de propriedade e, portanto, de desigualdades relativas. Esse pode não ser o socialismo utópico sonhado por alguns. Mas talvez possa ser uma das formas de socialismo real de transição para uma sociedade igualitária. A conferir.

(*) Wladimir Pomar é Jornalista, escritor e analista político. É autor, dentre outras obras, de “A Revolução Chinesa” (Unesp, 2004) e “China – O Dragão do Século XXI” (Ática, 1996).

(1) Foi lançada em 1966 por Mao Tsé-Tung e tinha como objetivo combater o surgimento de classes e categorias privilegiadas no país, além de desejar revitalizar o espírito da revolução chinesa. Esse processo foi oficialmente finalizado em 1969.

(2) Maior grupo étnico da China. Representa quase 92% da população do país.

(3) Guerra travada de 1950 a 1953, entre a Coréia do Sul e seus aliados, que incluíam os Estados Unidos e o Reino Unido, e a Coréia do Norte, apoiada pela República Popular da China e pela antiga União Soviética. O resultado foi a manutenção da divisão da península da Coréia em dois países, que perdura até aos dias de hoje.

(4) Campanha lançada em 1958 por Mão Tsé-Tung, que pretendia tornar a China uma nação desenvolvida e socialmente igualitária em tempo recorde, acelerando a coletivização do campo e a industrialização urbana.

(5) Movimento republicano chinês que surgiu em 1900 e era ligado ao Partido Nacionalista da China.