MST quer novo modelo para Reforma Agrária, entrevista com João Pedro Stedile

Estimado amigo e amiga do MST,

Em entrevista ao Jornal On Line Tribuna da Imprensa, João Pedro Stedile, da direção nacional do MST, fala sobre a necessidade de se construir um modelo de desenvolvimento que priorize a democratização da terra, a distribuição de renda e uma agricultura baseada na pequena e média propriedade.

Hoje não é mais possível pensar naquele modelo clássico de Reforma Agrária, defendido ao longo do século XX. Esse modelo foi desgastado pelas elites brasileiras, que aderiram ao neoliberalismo, modelo dominado pelo capital financeiro e internacional.

Para nós do MST, um novo modelo de Reforma Agrária passa pela compreensão de que é necessário alterar a matriz de produção no campo, ou seja, de derrotar o atual modelo, que prioriza alianças entre capital financeiro e o latifúndio. A entrevista completa nós socializamos com você logo abaixo neste Letraviva Especial.

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MST QUER NOVO MODELO PARA REFORMA AGRÁRIA

Entrevista*:

O senhor admite que o modelo de Reforma Agrária defendido pelo MST está esgotado? O que fazer?

Durante todo o século 20, os movimentos camponeses da América Latina lutaram pela chamada Reforma Agrária clássica, por meio da combinação da distribuição de terras com um projeto de desenvolvimento da indústria nacional, com fortalecimento do mercado interno e distribuição de renda. Esse modelo tirava os camponeses da pobreza e promovia o desenvolvimento mais justo. Assim aconteceu em todos os países do Hemisfério Norte, mas as elites brasileiras aderiram ao neoliberalismo, um modelo dominado pelo capital financeiro e internacional, dentro do qual a Reforma Agrária clássica está esgotada.

O modelo se esgotou por imposição das elites, não por nossa vontade. No entanto, a questão Agrária não está resolvida e temos 150 mil famílias acampadas e mais de quatro milhões de famílias Sem Terra no País. Diante disso, o MST vai lutar por uma Reforma Agrária de novo tipo, que é a democratização da terra combinada com reorganização da produção, priorizando alimentos para o mercado interno, sem o atual controle das empresas transnacionais. Precisamos também de uma Reforma Agrária que adote novo padrão tecnológico, respeitoso do meio ambiente, levando para o interior do País as agroindústrias na forma de cooperativas, o acesso à escola e à educação.

Qual a proposta para a agricultura brasileira? Qual o novo modelo agrícola?

O país precisa de um novo modelo agrícola, baseado na pequena e média propriedade. Para isso, precisamos antes de tudo derrotar o neoliberalismo, por meio da construção de um novo modelo de desenvolvimento nacional, que priorize a distribuição de renda, a indústria nacional e a prioridade absoluta em gerar trabalho e emprego para o povo ter renda.

O primeiro passo desse novo tipo de Reforma Agrária é a democratização da propriedade da terra, uma bandeira republicana que pode ser estabelecida por meio de limites no tamanho da propriedade rural.

Não se pode admitir que uma empresa qualquer tenha 100 mil ou 1 milhão de hectares apenas porque tem dinheiro. Os verdadeiros agricultores, mesmo capitalistas, sabem que com uma fazenda de 1.000 hectares podem ganhar muito dinheiro. A organização da produção, antes de tudo, deve atender as necessidades do mercado interno. O maior mercado potencial de produtos agrícolas não é Europa nem os Estados Unidos, são os pobres do Brasil. Aqui temos 60% da população que se alimentam mal.

Ou seja, temos 120 milhões de brasileiros querendo consumir, mas não têm renda. Atualmente, as transnacionais vêm aqui e controlam a produção, o comércio, o preço. Isso está errado. Como alternativa ao controle da produção e processamento dos alimentos, temos que levar as pequenas agroindústrias para o campo, gerando emprego e renda no interior do país.

Precisamos também de uma nova matriz produtiva no campo, por meio de técnicas que respeitem o ambiente, produzam alimentos saudáveis e não cheios de agrotóxicos, que afetam a saúde de toda a população, inclusive a da cidade, que muitas vezes pensa que não tem nada a ver com isso. Depois, podem pagar a conta desse desconhecimento no hospital.

Por fim, precisamos levar os serviços públicos para o campo, especialmente educação formal e o conhecimento para formar o cidadão camponês. O camponês sem estudo só enxerga a terra na frente dele e não compreende a complexidade da sociedade brasileira e da luta de classes. Nós estamos fazendo um esforço enorme de elevar o nível de consciência cultural e política.

Lançamos no nosso congresso uma campanha nacional de alfabetização no campo, com base no método cubano “Sim, eu posso”. Temos que dominar as letras e avançar no ensino formal. Quem está no ensino fundamental tem que ir para o ensino médio, e, quem está no médio tem de entrar na universidade. Para isso, nós temos só uma bandeira: para ser militante dos Sem Terra tem que estar estudando.

Como definir os acampamentos do MST no País?

Os acampamentos são formados por famílias de trabalhadores rurais pobres, que recebem os salários mais baixos da sociedade brasileira e percebem que a terra deve ser daqueles que trabalham nela, não daqueles que fazem reserva de patrimônio ou produzem para exportação. São pobres que vivem como arrendatários, bóias-frias, meeiros, e querem ter a própria terra para plantar.

Tem também famílias pobres, que foram expulsas do campo e mudaram para a periferia das cidades, mas querem retornar ao campo e enxergam no Movimento uma alternativa para a conquista da terra para melhorar a sua condição de vida, ter sua casa, uma horta para plantar e trabalhar, dar educação, lazer e garantir saúde para a família.

A vitória do agronegócio no campo obriga o MST a se politizar e buscar novas bandeiras?

Não acreditamos em vitória do agronegócio nem do neoliberalismo. Nas duas eleições do presidente Lula, o povo votou contra o neoliberalismo, um modelo concentrador de terra, riqueza e renda, que gera mais pobres e desempregados, e que não tem condições de resolver os problemas da sociedade. O agronegócio politizou o nosso movimento, porque o atual patamar da luta pela Reforma Agrária implica a derrota do modelo econômico neoliberal e a construção de um projeto de desenvolvimento, que resolva os problemas do povo brasileiro, criando condições para um processo de distribuição de terras de novo tipo.

A reforma das leis trabalhistas é uma polêmica à vista. Qual a sua posição sobre o assunto?

Nós somos contra a retirada de direitos históricos conquistados com muita luta pelos trabalhadores durante todo o século 20. Estamos juntos com o movimento sindical, popular e estudantil, em uma grande jornada contra a reforma da Previdência, contra toda reforma que retire direitos, como a Emenda 3. O governo precisa de um projeto para criar empregos, garantir um salário digno, moradia e fazer a Reforma Agrária. Essa política econômica, baseada em superávit primário, juros altos e no pagamento dos títulos da dívida, traz prejuízos à classe trabalhadora e à soberania do país e enriquece banqueiros e grandes empresários, estrangulando qualquer possibilidade de investimentos em políticas sociais, mantendo a perversa concentração de renda.

Pela primeira vez desde a fundação do MST, em 1984, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não foi convidado para o encontro nacional do movimento, recentemente, em Brasília. Por quê?

O Lula tem consciência de que o nosso Congresso tem outra natureza e não se pauta pelo governo. É isso que a imprensa também não entende. Nós nunca convidamos nenhum presidente da República. Não teria sentido, porque é uma atividade para a nossa militância e para discussão interna do nosso Movimento. As autoridades que participaram foram por iniciativa própria enquanto amigas do movimento.

Qual o balanço que o senhor faz do 5° Congresso Nacional do MST?

O nosso Congresso foi uma grande confraternização dos militantes de 24 estados, um momento de reflexão e análise coletiva sobre o quadro da questão agrária e a sociedade brasileira, e de mobilização, com a marcha que fizemos para denunciar que o Estado brasileiro, retratado nos seus três Poderes da República, impede a Reforma Agrária. Além disso, depois de dois anos de discussão nos acampamentos e assentamentos, fechamos nosso Programa Agrário, que apresenta a nossa proposta para a agricultura brasileira.

O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, ao rebater críticas do senhor, classificou como “medieval” o discurso de que as bandeiras do movimento estão ultrapassadas. Como o senhor vê isso?

Não queremos perder tempo com questões secundárias, que não ajudam para a realização da Reforma Agrária. Queremos mesmo é discutir com a sociedade, inclusive com o governo, um novo modelo agrícola, que dê prioridade à agricultura familiar voltada ao mercado interno, aos pobres do país. Isso deve começar com um processo massivo de Reforma Agrária, inicialmente com o assentamento das 150 mil famílias acampadas à beira de estradas.

Não podemos seguir com esse modelo do agronegócio, que entrega nossas terras às empresas transnacionais, expulsa o povo do campo, destrói o meio ambiente, impõe os transgênicos e os agrotóxicos. O novo modelo agrícola que defendemos está vinculado a um projeto de desenvolvimento, com base na defesa da soberania popular, e em um novo modelo econômico, que tenha como centro o fortalecimento do mercado interno, a distribuição de renda, a indústria nacional para sustentar a geração de emprego e renda para o povo.

A questão é que o presidente Lula está em dívida com o MST e com os camponeses de todo o Brasil, porque seu governo não fez a Reforma Agrária. Ao contrário, a concentração da propriedade da terra aumentou.

Qual a sua opinião sobre a desigualdade de renda no país?

A desigualdade entre ricos e pobres no país é uma vergonha, que é resultado das opções da elite brasileira no passado e no presente. Segundo estudos do professor Márcio Pochmann, cinco mil famílias controlam 40% da riqueza nacional, sendo que 10% da população rica se apropria de 75%, enquanto 90% do povo brasileiro ficam apenas com 25%.

A política econômica neoliberal, vigente desde a metade da década de 90, aponta para a preservação e ampliação dessa desigualdade. A sociedade brasileira gasta atualmente, por meio dos seus impostos, cerca de R$ 150 bilhões ao ano no pagamento dos títulos da dívida pública, que são repassados para 20 mil famílias de banqueiros e especuladores. Até o vice-presidente José de Alencar denunciou essa transferência absurda.

No campo, por conta da opção das classes dominantes, perdemos quatro oportunidades históricas de fazer a chamada Reforma Agrária clássica, combinando a distribuição de terras com um projeto de desenvolvimento da indústria nacional para desenvolver um mercado interno.

A primeira foi durante o processo de abolição da escravidão, quando os trabalhadores rurais negros queriam trabalhar no campo, mas foram impedidos pela Lei de Terras de 1850. Depois, na implementação do projeto nacional de industrialização, na década de 30. No começo da década de 60, com o ascenso do movimento de massas em torno das propostas de João Goulart, especialmente a Reforma Agrária.

Por fim, durante a campanha pelas Diretas Já, quando havia um clima favorável no PMDB para viabilizar um projeto de desenvolvimento nacional. A partir daí, as elites brasileiras deixaram de lado o projeto nacional e impuseram ao país o neoliberalismo, que subordina a economia brasileira ao capital internacional e financeiro e amplia a desigualdade social e a pobreza.

Como o senhor vê a violência no campo? Como combater isso?

O fim das mortes de trabalhadores rurais depende da realização da Reforma Agrária e da força dos movimentos sociais do campo, que, quando estão organizados, têm mais força para resistir à violência, como demonstrou o último relatório da pastoral da terra. As mortes e a impunidade, que deixa pistoleiros e latifundiários mandantes em liberdade, demonstram a intransigência das classes dominantes com os problemas sociais do povo brasileiro, e são sempre “resolvidos” por meio da violência e das mortes. A morte de companheiros e companheiras é conseqüência da nossa estrutura injusta da propriedade da terra e da mentalidade atrasada dos latifundiários.

Mostra também o caráter anti-social do Estado brasileiro, que não resolve os problemas do povo. Temos um Poder Judiciário que protege os ricos e se omite em relação aos direitos dos pobres, um Poder Legislativo que não aprova há mais de 10 anos um projeto que prevê a desapropriação sem indenização de terras de fazendeiros que se aproveitam do trabalho escravo, e um Poder Executivo que não tem coragem de cumprir a Constituição, que determina que todos os latifúndios que não cumprem a função social devem ser desapropriados.

O presidente Lula agora é o inimigo da Reforma Agrária?

Os nossos inimigos são o agronegócio, as transnacionais, os bancos e o mercado financeiro. Denunciamos também que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário impedem a Reforma Agrária, dando proteção ao latifúndio e apoio ao agronegócio. Em relação ao governo, nós já entregamos uma proposta e queremos discutir um plano de médio e longo prazo para a agricultura brasileira para combater a pobreza no campo e fazer a Reforma Agrária. Vamos manter a nossa autonomia e criticar a política econômica, o apoio ao agronegócio e às grandes empresas, por meio de empréstimos dos bancos públicos e com a isenção da taxa de exportação.

Como o senhor vê a esquerda brasileira?

A esquerda brasileira está passando por um processo pedagógico e está compreendendo que as mudanças sociais não acontecem pela vontade de um presidente, de um partido ou de um governo, por mais que seja nosso amigo e que tenhamos ajudado a eleger. A transformação do país acontecerá com a mobilização do povo brasileiro em torno de um projeto de desenvolvimento nacional, que modifique a estrutura da sociedade brasileira e sustente o crescimento da economia, com criação de empregos, Reforma Agrária, investimentos nos serviços públicos de educação e saúde e distribuição de renda e riqueza.

Os movimentos de massa de esquerda estão em refluxo desde 1989. Na década de 80, o país viveu um período de ascensão dos movimentos de massas, que conseguiu impor a democracia e apontou no sentido de mudanças mais profundas na sociedade brasileira. Na década de 90, o refluxo implicou perda de força do movimento sindical, que teve sua base social atingida pelas políticas neoliberais, que causaram desemprego e informalidade.

Qual o diagnóstico que o senhor faz do governo Lula?

O povo votou no presidente Lula contra o neoliberalismo. No entanto, as alianças feitas para ganhar as eleições geraram um governo de composição, que inclui com peso as forças neoliberais. Não houve um reascenso do movimento de massas na sociedade. Embora tenhamos um governo mais progressista do que os tucanos, a correlação de forças não se alterou em relação ao modelo econômico. A nossa sociedade é muito complexa e as forças do capital, aliadas ao capital internacional, são muito poderosas. As mudanças no Brasil virão quando o povo tiver mais consciência, estiver mais organizado e realizar grandes mobilizações de massa, como fizemos contra o regime militar.

Como analisar essa série de escândalos no país?

O Estado brasileiro foi construído historicamente por meio do patrimonialismo, das trocas de favores e da corrupção para favorecer uma burocracia ligada a empresários. Não é uma novidade. Precisamos sair do superficial e buscar a raiz desses desvios, que é a relação estreita de senadores e deputados com empresários, empreiteiros, banqueiros e com o mercado financeiro. Não adianta fazer uma reforma política que não traça mudanças nesse sistema, que tem a Vale do Rio Doce com 47 deputados; a Aracruz, 16 deputados; o Banco Itaú, 27, e o Grupo Gerdau, 27.

O problema da democracia brasileira é mais profundo do que aparece nos jornais e na televisão. Nós precisamos sim de uma reforma política, mas para colocar os poderes e as instituições a serviço do povo, por meio de mecanismos de real participação e de representação. A Constituição prevê no artigo 14 a realização de plebiscitos, referendos e consultas populares. Nós estamos, com outros movimentos sociais e entidades como a OAB e CNBB, coordenados pelo professor Fábio Comparato, em uma campanha em defesa da democracia e da república. *(Fernando Sampaio, Tribuna da Imprensa)

Saudações!
Secretaria Nacional do MST