Em defesa da educação pública

Lúcia Stumpf e Ricardo Ribeiro

A Faculdade de Direito da USP, ao longo da história, se consagrou como um porto seguro, o que lhe garantiu a alcunha de “Território Livre”

EM ARTIGO publicado neste espaço no último domingo, o diretor da Faculdade de Direito da USP, João Grandino Rodas, procura justificar suas atitudes em relação ao ocorrido entre os dias 22 e 24 deste mês. Primeiro, a ocupação simbólica da instituição pelos movimentos sociais. Depois, a truculenta desocupação pela Tropa de Choque da Polícia Militar. Por fim, o fechamento da faculdade por dois dias, com suspensão das aulas.

O desembargador evoca o Estado democrático de Direito, os bons índices acadêmicos e de pesquisa da universidade pública brasileira e dispara: “É aceitável que grupos alheios à universidade a usem como palco privilegiado de suas reivindicações, por mais justas que possam ser?”.

Nossa resposta: o objetivo, ao adentrar simbolicamente as centenárias arcadas, foi provocar a reflexão sobre os graves problemas que afetam a educação em nosso país e dizer que queremos, sim, cada vez mais, ver pobres, negros e sem-terra, “os alheios”, ocupando as carteiras das universidades brasileiras.

Ao longo dos anos, o sistema público de ensino inverteu a sua lógica de ser instrumento de inclusão, promoção social e desenvolvimento nacional. Sofreu intenso processo de desmonte e se transformou em mais um mecanismo de exclusão e marginalização de alguns setores da sociedade.

Sem contar que a faculdade de direito, ao longo da história, se consagrou como guarida, porto seguro, o que lhe garantiu a alcunha de “Território Livre” para todos que enfrentavam anos difíceis nas ruas do país. Podemos lembrar a resistência ao Estado Novo e à ditadura militar, a greve dos metalúrgicos em 1978, as campanhas pela anistia e as Diretas-Já.
A ocupação não desacreditava ou solapava a instituição, como sugere o diretor. Sem a dramatização que carrega o seu texto, o protesto contava, sim, com elementos ligados à universidade: estudantes da USP e de outras instituições organizados pela UNE (União Nacional dos Estudantes).

O diretor soube desse fato desde o princípio, pois enviou o professor Nestor Duarte para representar a diretoria e conversar com os manifestantes. Além disso, foi informada a presença do Centro Acadêmico XI de Agosto, que, apesar de não ter participado do ato, queria garantir que a ocupação ocorresse pacificamente.

A manifestação era simbólica e integrava a Jornada de Lutas em Defesa da Educação, série de protestos que mobilizaram mais de 100 mil pessoas em diversas cidades e que promoveram outras ocupações de caráter pacífico e sem incidentes com a polícia.

Símbolo desse sistema excludente, a Faculdade de Direito da USP deveria ficar ocupada por um prazo determinado e amplamente divulgado de menos de 24 horas. O músico Tom Zé esteve presente ao ato, realizou show improvisado e declarou apoio à ocupação. A proposta, desde o início, era realizar até as 15h do dia seguinte outras atividades culturais, debates e grupos de discussão.

Em nenhum momento houve intenção de esbulho possessório, já que por esta prática se entende o “ato de despojar o possuidor da sua posse injustamente, ou seja, de forma clandestina, violenta ou por abuso de confiança”. Não se configurou -e isso quem fala são representantes que estavam dentro da ocupação até as 2h, quando a Tropa de Choque chegou batendo os cacetetes em seus escudos- nada que justifique a acusação.

Não foi um ato clandestino. Não houve violência. A entrada e a saída do prédio não foram impedidas. As aulas não foram interrompidas e ocorreriam normalmente no dia seguinte. Não abusamos da confiança do diretor -muito pelo contrário, ele é que o fez, enviando representantes para negociar enquanto solicitava a intervenção da PM.

A entrada do choque no “sagrado solo de são Francisco”, em especial na Sala dos Estudantes, mancha a história da instituição, pois a fere em sua conceituação de território livre, algo tão caro para várias gerações. Reforça ainda a visão dominante de que a universidade pública é feita somente para os que conseguem ter acesso a ela.

No caso da USP, em particular no curso de direito, ingressam, na maioria, filhos de uma elite nacional sustentados, como lembra o sr. Rodas ao final de seu artigo, “pelos impostos de todos os paulistas”. Uma parcela representativa desses contribuintes, inconformados com a atual situação, estava se manifestando na universidade. Como nos anos de chumbo, saíram de lá no camburão da polícia.

Lúcia Stumpf, 25, estudante de jornalismo da FMU, é presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes).
Ricardo Ribeiro, 22, estudante da Faculdade de Direito da USP, é presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto.