Quilombo, território de liberdade

Homero Martins e Helton Ribeiro

No dia 20 de novembro de 1695, morria, assassinado, Zumbi dos Palmares. Era o fim de uma luta de mais de cem anos no interior da capitania de Pernambuco. Mas não foi o fim da luta dos negros pela emancipação. Hoje, a liberdade tem novos significados, englobando direitos de cidadania e, no caso dos quilombos, com a titulação de seus territórios. Um direito que foi negado aos afro-descendentes mesmo antes da abolição formal da escravidão, com a Lei de Terras de 1850 (Lei 601), que transformou a terra em mercadoria. O conceito atual de quilombo alarga-se justamente para reparar essa injustiça histórica, transformando terra em liberdade e autonomia. A despeito da polêmica recente, esse é o sentido da titulação dos territórios quilombolas.

A própria opção pelo “20 de Novembro” como Dia da Consciência Negra, em detrimento do “13 de Maio”, tem um significado político preciso: a abolição formal do regime escravista não significou a libertação real. Para muitos abolicionistas, como Joaquim Nabuco e André Rebouças, já era evidente que a questão da emancipação dos escravos não podia ser separada da democratização do acesso à terra. A abolição, para ser efetiva, deveria vir acompanhada de uma reforma agrária.

Temendo essa possibilidade, as oligarquias rurais se prepararam com antecedência para o fim da escravidão. Foi assim que, 38 anos antes da promulgação da Lei Áurea, instituiu-se, com a Lei 601 de 1850, a propriedade privada da terra, vedando qualquer forma de aquisição que não se desse mediante compra e venda. Ficavam desde então expulsos do campo os futuros escravos libertos, obviamente sem recursos para comprar seu pedaço de chão.

Apesar disso, muitas comunidades encontraram formas alternativas de ocupação da terra. Estabeleceram-se como posseiras em áreas devolutas ou pertencentes à igreja. Em alguns casos, receberam pequenas glebas como herança de fazendeiros. Quase sempre, organizaram-se em torno do uso comum da terra, da agricultura familiar e de subsistência e dos recursos naturais disponíveis.

Se não eram “quilombolas” no sentido histórico, eram grupos remanescentes de escravos que ainda resistiam à opressão resultante da forma pela qual se dera o fim do regime escravista. Após cem anos de resistência, os direitos dessas comunidades foram reconhecidos pelo Estado brasileiro na forma de um preceito constitucional: o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, assegurando aos remanescentes de quilombos o direito à propriedade das terras por eles ocupadas.
O marco jurídico estabelecido pela Constituição, entretanto, marcava apenas o início de uma nova batalha. Centenas de comunidades rurais de afro-descendentes adentraram a arena política exigindo a aplicação do preceito constitucional. Mesmo no Estado de São Paulo, mais de 50 quilombos reivindicam a titulação de seus territórios.

Foram necessários, contudo, outros 15 anos de luta, até que, em 2003, o governo regulamentou o artigo 68 ADCT por meio do Decreto 4.887, estabelecendo os critérios para a identificação dos remanescentes de comunidades de quilombos e atribuindo ao Incra a responsabilidade pela regularização de seus territórios.

O decreto acolhe o princípio da autodefinição, consagrado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de julho de 1989. Seguindo esse princípio, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos “os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida”.
Logo, não faz sentido circunscrever o direito à terra apenas à realidade histórica dos quilombos formados por escravos fugidos. Fazê-lo seria contrariar um tratado internacional que adquiriu força de lei no Brasil pelo Decreto 5.051, de 2004.

Mas a possibilidade de finalmente regularizar os territórios quilombolas mexeu com esse verdadeiro tabu da sociedade brasileira, a propriedade privada da terra. Esta sempre foi considerada um direito absoluto, isento de deveres, embora a Constituição diga o contrário: a propriedade da terra está condicionada a uma função social.

Na tentativa de frear o processo de regularização fundiária dos quilombos, alguns setores da sociedade têm questionado o princípio da autodefinição, como se identidades sociais só pudessem – e devessem – ser atribuídas de fora. Aferrando-se a um conceito restrito, argumentam que quilombos seriam apenas aqueles agrupamentos de escravos fugidos formados até 1888.

Não é assim que a questão é tratada pelo governo federal. Para além de suas especificidades históricas, o moderno conceito de quilombo busca fazer frente a uma situação ainda atual. Se há comunidades negras que conseguiram se fixar no campo a despeito dos obstáculos criados pela Lei de Terras, pela grilagem de terras e os freqüentes esbulhos cometidos contra as comunidades étnicas por agentes do mercado imobiliário, mais do que justo seria oferecer-lhes a devida segurança jurídica para que permaneçam na terra de seus antepassados, livres das ameaças da grilagem e da especulação imobiliária.

Para uns, terra é apenas mercadoria. Sintomaticamente, continua em vigor a Lei 601, de 1850, que consolidou o latifúndio como a forma predominante de organização do meio rural brasileiro. Para os quilombolas de ontem e de hoje, no entanto, terra é liberdade, autonomia, garantia de subsistência e da transmissão das tradições culturais de grupos sociais que enfim vislumbram a possibilidade de um futuro mais digno. E para um país que tem, hoje, Zumbi dos Palmares como herói nacional, a luta pela liberdade – na forma da titulação dos territórios quilombolas -, é uma luta de todos.

Homero Martins e Helton Ribeiro são, respectivamente, antropólogo e jornalista da Superintendência do Incra em São Paulo.