Aquecimento global: efeitos para a vida

Por Ana Claudia Mielki Calor quando deveria fazer frio, chuvas fortes em poucas horas, inundações, secas onde a paisagem costumava ser alagada, queimadas, aumento de doenças respiratórias. Esses são alguns sintomas da perturbação do clima sentidos, sobretudo, nas últimas duas décadas. Essa perturbação está associada ao que os cientistas estão chamando de aquecimento global.

Por Ana Claudia Mielki

Calor quando deveria fazer frio, chuvas fortes em poucas horas, inundações, secas onde a paisagem costumava ser alagada, queimadas, aumento de doenças respiratórias. Esses são alguns sintomas da perturbação do clima sentidos, sobretudo, nas últimas duas décadas. Essa perturbação está associada ao que os cientistas estão chamando de aquecimento global.

Apenas nas últimas duas décadas, a temperatura do planeta subiu quase 0,8 graus. Foi o que mostrou o relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPPC), órgão das Nações Unidas responsável por produzir informações científicas sobre meio ambiente. Segundo os cientistas, para manter a qualidade de vida atual, a temperatura do planeta não pode subir 2º graus. O relatório foi divulgado esse ano e está gerando uma reflexão em nível mundial sobre o futuro do planeta.

Em entrevista o professor Carlos Walter Porto-Gonçalves, doutor em geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do programa da pós-graduação da Universidade Federal Fluminense (UFF), nos fala sobre as conseqüências do aquecimento para o meio ambiente e a vida das pessoas. Segundo ele, é preciso construir um consenso acerca da superação do atual modelo de desenvolvimento econômico, cuja matriz energética é baseada em combustíveis fósseis. No entanto, diz ele, “a gente tem que desconfiar de soluções únicas para problemas complexos” como é o caso dos agrocombustíveis.

Quais são as principais causas do aquecimento global?

Carlos Walter – O aquecimento do planeta é um fenômeno que ocorre em parte naturalmente, ou seja, já houve na história do planeta momentos mais frios e momentos mais quentes, um fenômeno natural de aquecimento e resfriamento. A novidade é que atualmente há um aquecimento global provocado pela mão do homem. Esse aquecimento está associado ao que deriva da matriz energética que se constituiu a partir da Revolução Industrial, com o uso do carvão e depois do petróleo. O debate recente que vem se colocando do aquecimento, é que ele estaria sendo provocado pelo aumento da emissão dos chamados gases de efeito estufa, gases que emanam a partir do uso da máquina a vapor e do uso dos combustíveis fósseis, como por exemplo, monóxido de carbono (CO), dióxido de carbono (CO2). Ou seja, o clima da terra estaria mudando não só como muda naturalmente, mas por intervenção humana.

E quais são as conseqüências desse aquecimento para o meio ambiente?

Carlos Walter – Os efeitos do aquecimento global não são geograficamente homogêneos no planeta. Por exemplo, um dos fenômenos que a gente está percebendo é a diminuição da espessura e da extensão das geleiras e das calotas polares, associada a essa diretamente, há o aumento do nível da água do mar. Então existem regiões litorâneas que podem vir a ser invadidas pelo mar em função da elevação do nível da água. Com o aquecimento global há também uma perturbação nos climas. Isso tem implicações, por exemplo, para os camponeses, que perdem a previsibilidade em relação às estações climáticas, que de alguma forma, a cultura camponesa construiu ao longo do tempo. O que não é qualquer coisa para quem vive da lavoura. Nas cidades há o problema das chuvas muito concentradas em poucas horas e em poucos dias. As chuvas estão ficando mais torrenciais e isso gera fenômenos de desmoronamento de encostas e alagações, com prejuízos enormes.

E quais seriam as conseqüências sociais e até mesmo sobre a saúde das pessoas?

Carlos Walter – O clima está mudando. A gente está exatamente num fenômeno de transição. Então ao mesmo tempo em que há dias de concentração de chuvas, há um fenômeno também de secas, que fazem parte desse processo de desequilíbrio climático. Em 2003 houve um problema que acabou atingindo os hospitais franceses. Foram dias tão quentes, que houve superlotação de hospitais por causa de problemas respiratórios e cardíacos agravados por situações de calor intenso. Tivemos pane, por exemplo, no sistema de energia na Inglaterra, e de tanto usar o ar condicionado, o sistema entrou em colapso nos EUA. São situações dramáticas, nesses casos, atingido populações idosas e crianças.

Quais são as populações mais prejudicadas pelos impactos do aquecimento?

Carlos Walter – Atingem, sobretudo, as populações mais pobres. São geralmente as populações mais pobres, as que moram em situações de risco, normalmente em lugares de mangues ou de encostas. Essas populações ficam mais expostas e cada vez mais vulneráveis. Por exemplo, há um aumento no número de tufões e furacões, que têm sido cada vez mais intensos. Existem aqueles furacões de nível altíssimo, mas houve um na República Dominicana [no final de outubro] que foi até chamado de tempestade tropical, com nível inferior ao de furacão, menos intenso, mas que fez uma devastação como se fosse um furacão do mais alto nível. Por que? São populações tão vulneráveis e tão pobres, que não precisa nem ser furacão, uma tempestade tropical já cria um grande desastre para essas pessoas. Essas tempestades tropicais, furacões e tufões têm sido cada vez mais numerosos, e eles têm atingido populações mais pobres, mesmo nos países ricos. Como foi a situação do furacão Katrina, em Nova Orlenas, nos EUA, que acabou revelando uma pobreza que na cabeça da maior parte das pessoas não existia nos EUA.

O que você acha dessas soluções “milagrosas” como os agrocombustíveis?

Carlos Walter – A gente tem que desconfiar dessas soluções únicas para problemas complexos. Quando se diz que os agrocombustíveis são uma alternativa ao aquecimento global não deixa de ser uma maneira oportunista de reconhecer aquilo que se vinha negando até aqui: que o aquecimento global é um fenômeno provocado pela intervenção da matriz energética. Já se sabe que no processo de produção dos agrocombustíveis há uma demanda enorme de combustíveis fósseis. Então se vai aumentar a produção desses combustíveis por meio de biomassa, haverá um aumento também no uso dos combustíveis fósseis, além de do aumento no uso de fertilizantes e de agrotóxicos, com contaminações da mais variadas. Então os métodos de produção dos agrocombustíveis têm sido métodos que até aqui têm sido altamente danosos ao meio ambiente. Além disso, há uma previsão, na melhor das hipóteses, que haja daqui a 20 ou 25 anos, o uso de até 20% do etanol misturado à gasolina. Mas a indústria do automobilismo faz projeção de um aumento em proporção bem maior da frota de automóveis. Então se não frear esse modelo de desenvolvimento individualista, que tem no automóvel uma referência, não vai resolver problema nenhum.

Isso traz alguma conseqüência para a questão agrária, para a produção de alimentos e para os camponeses?

Carlos Walter – Muda completamente os parâmetros do mercado de terras, a terra vira uma mercadoria na sociedade capitalista. Segundo a Única (União da Indústria da Cana-de-Açúcar), que reúne os grandes empresários do setor sucroalcoleiro, haverá no Brasil um aumento de 1 milhão de hectares para o plantio de cana, em 15 ou 20 anos até chegar em torno de 20 a 25 milhões de hectares só no plantio de cana. Até o ano de 2012 já estão previstas a construção de 77 novas usinas de cana, de acordo com dados da Única. Essas usinas são todas no eixo São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso do Sul, região onde existe a maior disponibilidade da chamada logística, infra-estrutura, desenvolvimento técnico científico, mão de obra disponível, energia, transportes e terras boas. No entanto, essas áreas também têm muita área de pastagem. Apenas no estado de São Paulo são 9 milhões de hectares de pastos, áreas que estão sendo visadas para expansão da cana e da soja. Ao colocar a cana no lugar do pasto, para onde é que vai o boi? Ora, vai para a região de fronteira, para a região da Amazônia. Em pesquisas que realizei este ano, constatei um aumento de 25 a 30% no preço do arrendamento da terra no norte de Mato Grosso. E isso tem implicações no custo da produção de alimentos, fica mais caro o arroz, o feijão e os outros cultivos. Então você tem uma reorganização completa do espaço brasileiro.

As conseqüências do aquecimento podem trazer uma nova dimensão para os conflitos econômicos e sociais?

Carlos Walter – Acredito que sim. Isso abre uma discussão importante. É preciso debater mais seriamente a questão agrária. Está na hora de assumir que a questão ecológica é fundamental no debate sobre Reforma Agrária, ou seja, a Reforma Agrária como parte de um projeto político para construir uma sociedade mais justa. Mais democrática na medida em que quando se democratiza o acesso a terra, há também uma melhor distribuição do poder. Essa também é uma discussão sobre o destino do planeta e da humanidade. Para que a humanidade tenha futuro, é preciso criar uma nova configuração para o debate da Reforma Agrária. O aquecimento global acaba criando uma oportunidade fantástica para que a gente rediscuta o sentido do uso da natureza. Nessa hora, surpreendentemente, o campesinato adquire um papel relevante. Para aqueles que acreditavam que o campesinato estava fadado ao desaparecimento, acontece o contrário. O campesinato, assim como as populações indígenas – que habitam as regiões que tem maior biodiversidade e fontes de água que não foram tocadas pelo avanço do capitalismo – passam a adquirir um papel central no debate sobre o futuro da humanidade.

Existem alternativas possíveis para resolver o problema do aquecimento do planeta?

Carlos Walter – Na Bolívia e na Venezuela existe um debate para barrar a questão dos transgênicos, e consequentemente, a monocultura, a lógica da indústria. Bolívia e Venezuela são países que estão se colando claramente contra o uso dessas sementes laboratorialmente produzidas e abrindo um debate para questões da agroecologia, porque há um entendimento da necessidade de que a produção se volte para garantir os abastecimentos cada vez mais locais, regionais. Essa discussão também questiona o complexo técnico-científico-financeiro-industrial-midiático que é a configuração de poder contemporâneo. A própria mídia é parte desse sistema. É uma burguesia de novo tipo, que opera em rede, é multidimensional, não opera naquela visão cartesiana, separada, tudo é um complexo só. É um holding, uma empresa que ao mesmo tempo tem setor químico, siderúrgico, de agrotóxicos, tem setor de banco, ao mesmo tempo tem ações no Carrefour, fazem parte de um mesmo complexo. No Caso do Brasil, em cada canto existem experiências extremamente interesses, mas que não se constituem num programa político nacional. São experiências ricas em agroecologia, bem sucedidas, envolvendo os camponeses, sua cultura, com produção, mas são projetos que ficam dependendo financiamento de uma ONG ou de uma igreja. Tudo meio precário, mas mostrando um potencial fantástico. Se houvesse políticas públicas isso propiciaria o abastecimento do mercado local. Então existem alternativas sendo apresentadas, mas elas precisam se constituir enquanto políticas públicas.

É possível resolver ou amenizar o problema do aquecimento do planeta? Como seria isso?

Carlos Walter – A discussão de uma outra sociedade é clara. Os males que nós estamos vivendo derivam todos do capitalismo. Então buscar uma sociedade para além do capitalismo é fundamental. Nós vivemos numa sociedade que transforma tudo em mercadoria, a terra e os seres humanos. Transforma cada um num átomo isolado individualístico. Se conseguimos mostrar isso, construir uma sociedade para além do capitalismo deve ser o nosso norte. Qual vai ser a sociedade que vai sair daí, eu diria que a humanidade é tão rica na diversidade cultural, que eu acredito que será capaz de encontrar diferentes caminhos. Eu queria preservar essa diversidade como um patrimônio do projeto da sociedade do futuro.