Legitimidade em debate na fronteira do RS

Bruno Lima Rocha*

Na madrugada da última terça-feira (4/03) o Rio Grande assistiu mais um episódio do embate de projetos para o setor primário do Cone Sul. Cerca de 900 mulheres e crianças da Via Campesina ocuparam a Fazenda Tarumã, com 2,1 mil hectares, localizada no município de Rosário do Sul. O motivo do protesto foi duplo. Tanto marca a semana comemorativa do dia Internacional da Mulher (8 de março) como o não cumprimento da Lei da Faixa de Fronteira. Isto porque a área pertence a uma empresa “brasileira”, a Azenglever Agropecuária, cujos titulares são João Fernando Borges e Otávio Pontes. Respectivamente, trata-se do diretor florestal e do vice-presidente da Stora Enso no Brasil.

Este artigo não vai necessariamente debruçar-se sobre o tema da invasão ou ocupação, e nem tampouco da repressão em si, mas de seus mecanismos. Um dos aspectos centrais de qualquer exercício de poder é sua legitimidade. Levanto a tese de que boa parte do acionar dos governos do Brasil e do Rio Grande do Sul não está sendo legítimo. Vamos aos fatos.

Existe uma lei, prerrogativa constitucional, que impede a estrangeiros ser proprietários de terras na Faixa de Fronteira. Ou seja, da linha divisória do Brasil com as países vizinhos até 150 kms adentro do território brasileiro, é proibido a propriedade rural para qualquer um que não seja nacional. Este impeditivo vale tanto para pessoas físicas ou jurídicas. Ciente dessa limitação legal, a transnacional Stora Enso criou uma empresa sob controle de brasileiros de sua confiança e afirmou este recurso em nota oficial. Ou seja, não se trata de teoria da conspiração, mas constatação factual.

A chamada Lei da Faixa de Fronteira (No. 6.634) tampouco é algo passível de interpretação legal. O texto jurídico afirma com todas as letras, que é vedada: “participação, a qualquer título, de estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, em pessoa jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural”. A única possibilidade de ter um estrangeiro como proprietário é o assentimento prévio de órgão federal competente. Em sua nota oficial, a empresa sueco-finlandesa admite que o caso ainda tramita com as autoridades competentes e por isso “Azenglever foi formada para assegurar a terra até que a autorização propícia seja dada” (no original: Azenglever was formed to hold the land until proper authorization is given).

Como a última alteração da Lei data de 1979, ainda estava em vigor o temido Conselho de Segurança Nacional. No Brasil democrático, este órgão foi substituído pelo Conselho de Defesa Nacional, que ainda não deu o parecer positivo sobre o tema. Como o volume de investimentos obedece ao planejamento estratégico da transnacional e não aos tempos legais do Brasil, a empresa apareceu com uma alternativa. Um projeto lei que altera o limite da Faixa foi apresentado. A peça jurídica é de autoria do senador gaúcho e ex-radialista Sérgio Zambiasi (PTB-RS). A alteração da Lei, aprovada no Senado, mas ainda não regulamentada, reduz a zona exclusiva para apenas 50 kms. Por “coincidência”, tal alteração vale apenas para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul. O argumento é que se trata de fronteiras pacíficas e aptas para receber investimento estrangeiro.

Qualquer um que observe esta linha fronteiriça verá que sobre ela está a Bacia do Paraná e abaixo desta boa parte do Aqüífero Guarani. Como a indústria do eucalipto necessita de água doce barata e em abundância, ninguém em sã consciência pode admitir que a zona reduzida seja por outra razão. Quanto ao argumento de ser uma fronteira mais segura e controlada, me parece igualmente falso. Toda a região de fronteira é bastante “agitada” e a região de Ponta Porã (MS) e Pedro Juan Caballero (Paraguai) é duríssima.

Atenta a esta situação no mínimo suspeita, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar a compra de terras pela Stora Enso, utilizando a Azenglever Agropecuária como proprietária. São cerca de 50 fazendas totalizando mais de 45 mil hectares em nome dos dois proprietários da empresa “brasileira” cuja titularidade a própria Stora Enso admite. No momento, os dois sócios da firma “nacional” são os maiores latifundiários do Rio Grande, superando em extensão de terra aos diretores da Farsul. Mais uma vez esta afirmativa tampouco é especulação, mas é a declaração do coordenador-geral de Defesa Institucional da PF, Fernando Queiroz Segovea, dada ao Senado da República.

Mesmo com todos estes elementos, o governo do estado, na figura do subcomandante-geral da Brigada Militar (PM gaúcha) coronel Paulo Roberto Mendes e do Comandante Regional de Policiamento da Fronteira Oeste coronel Paulo Binsfeld, simplesmente proibiu o trabalho dos jornalistas durante a desocupação da Fazenda Tarumã. Mais uma vez trata-se de fato constatado, sendo inclusive motivo de nota oficial do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS. Todos os que acompanham a política na Província de São Pedro sabem o quanto a atual diretoria desta entidade é ponderada e comedida ao se manifestar. Fica a dúvida; se a ação da polícia era legítima, porque impedir o trabalho dos profissionais de comunicação?

Por fim, encerro este artigo com uma singela conclusão. Nem o dualismo político típico dos gaúchos escapa do brete do eucalipto. Um exemplo é o próprio Zambiasi, político profissional cujo partido é governo na prefeitura de Porto Alegre, no Piratini e no Planalto. Da parte do governo central, embora seus correligionários façam oposição no pago, é impossível negar dois fatos. O primeiro é a presença das papeleiras como grandes financiadoras de campanha, agindo de forma pluripartidária. Não se trata de ilação, mas de consulta pública no portal do TSE. Outro fato inegável é o peso econômico do BNDES como suporte da implantação da indústria da celulose em território gaúcho.

Os novos agentes econômico-jurídicos da indústria da celulose estão alterando tanto o Pampa como a política no Rio Grande. Sua gravitação é tamanha que o dualismo tornou-se nada mais do que peça de retórica pouco ou nada crível.

*Bruno Lima Rocha é cientista político