A “crise do agro” na Argentina

Da Radioagência NP Na Argentina, os proprietários rurais estão em pé de guerra contra o governo Kirchner, provocando desabastecimento nas grandes cidades. As colheitas seguem seu calendário habitual, mas os produtos não chegam às prateleiras. Uma convergência de diferentes camadas de proprietários rurais provoca também dificuldades com o transporte, pelos bloqueios de estradas que esses setores realizam, métodos tradicionalmente usados pelos trabalhadores desempregados para fazer ouvir as suas demandas.

Da Radioagência NP

Na Argentina, os proprietários rurais estão em pé de guerra contra o governo Kirchner, provocando desabastecimento nas grandes cidades. As colheitas seguem seu calendário habitual, mas os produtos não chegam às prateleiras.

Uma convergência de diferentes camadas de proprietários rurais provoca também dificuldades com o transporte, pelos bloqueios de estradas que esses setores realizam, métodos tradicionalmente usados pelos trabalhadores desempregados para fazer ouvir as suas demandas.

A queda de braço entre o governo e o agronegócio está afetando antes de mais nada a população das cidades, com a falta de produtos de primeira necessidade. Mas também gera uma tensão política onde está em jogo muito mais do que os interesses imediatos do agronegócio.

Para falar nesta questão, a Radioagência NP entrevistou o jornalista argentino e professor da Universidad de La Plata, Miguel Croceri.

Em que consiste esse conjunto de protestos que fazem parte da “crise do agro” na Argentina e quais serão as suas conseqüências?

Sim, é verdade, Argentina está vivendo uma crise política e social de grande magnitude. Trata-se de um protesto agrário, dos setores do campo argentino, um país que, vale lembrar, tem a base da sua economia na atividade agrícola e pecuária, nos seus cereais e suas carnes. E os setores que são proprietários do campo argentino iniciaram um protesto que já leva três semanas e que atingiu uma magnitude inesperada. E coloca o governo perante um sério desafio político e, ao mesmo tempo, produz uma fratura na sociedade. Conseqüências imediatas como o desabastecimento alimentar. O corte do trânsito numa quantidade de estradas do país. E a possibilidade de fatos de violência grave que, mesmo não tendo ainda se concretizado, estão latentes.

O que originou o protesto?

Este protesto iniciou-se logo que o governo aprofundou uma modalidade de arrecadação de impostos sobre as exportações de produtos agropecuários que já vinha exercendo desde a brutal desvalorização que o peso argentino sofreu no início de 2002. A partir daquele momento, começou um sistema de impostos, de direitos à exportação que são chamados “retenções”. Esse sistema faz poucos dias que foi ampliado pelo atual governo da presidenta Cristina Kirchner, especialmente para a soja. Levando em conta os níveis recordistas, as ganâncias extraordinárias e a renda fabulosa da exportação de soja.

Como se posicionam os setores urbanos?

Há alguns apoios de setores das classes médias e altas nas grandes cidades que têm afinidade social e ideológica com os setores do campo. E, ao mesmo tempo, o que tem aparecido neste movimento é uma espécie de aliança política de todas as frações das classes médias e altas que tradicionalmente estiveram contra o peronismo. E que atualmente está no governo da presidenta Cristina Kirchner, mas sustentada em grande parte pelas classes populares, nos setores mais empobrecidos e ainda nos excluídos, que têm uma afinidade histórica com o peronismo e que por outra parte são motivo de uso clientelar do aparato do Estado que explora as suas necessidades.

O governo de Cristina representa uma mudança de postura com respeito aos interesses do agronegócio?

Não, não representa qualquer mudança importante perante aos interesses do agronegócio. O governo simplesmente recorreu aos impostos sobre as exportações agropecuárias, principalmente sobre a soja. Os impostos são muito altos. Foram aumentados faz pouco mais de vinte dias e isto é o que deslanchou o protesto. A arrecadação altíssima que se propõe o governo.

Qual a finalidade dessa arrecadação?

A finalidade dessa arrecadação permitiu uma série de conseqüências econômicas muito favoráveis para o Estado e para o conjunto da sociedade. Por exemplo, permitiu que o Estado tenha um altíssimo nível de reservas monetárias que o preserva das crises, das turbulências financeiras internacionais. Permitiu ter a capacidade desde o Estado para regular o mercado cambiário, e, em conseqüência, o valor da moeda argentina mantém-se estável faz cinco anos. Permitiu também que o Estado recupere, depois da longa década neoliberal, a capacidade de intervenção na economia.

Quais são as conseqüências dessa política impositiva para o Estado e para os setores populares?

O governo, então, resumindo, não é que tenha afetado os interesses do agronegócio. Nem sequer estimulou a diversificação produtiva. Ao contrário, a expansão das fronteiras agrícolas e dos cultivos de soja continuam aumentando. O governo recorreu a essa fonte de financiamento público que permitiu, como já disse, algumas situações favoráveis para as finanças públicas. As reservas monetárias. A estabilidade da moeda. A possibilidade do Estado ter fundos para intervir na economia. E isto, por sua vez, trouxe algum benefício indireto para os setores populares.