Indústria do fumo explora trabalho infantil no Sul

Por Paula Cassandra e Raquel Casiraghi

O Ministério Público do Trabalho (MPT) nos estados do Paraná e de Santa Catarina ajuizou ação civil pública contra onze indústrias fumageiras devido à participação de crianças no plantio de fumo. De acordo com o MPT, o sistema imposto pelas empresas obriga os agricultores a colocarem os jovens na lavoura.

A procuradora do Ministério Público do Paraná, Margareth Matos, afirma que a existência de crianças nos plantios é conseqüência do baixo preço que a indústria paga pelo fumo aos agricultores, o que inviabiliza a contratação de terceiros.

“Se eles não envolverem os filhos, não conseguem atingir a quantidade exigida pelas indústrias e sofrem com a penalização de uma multa muito alta que as indústrias aplicam. Se fizer uma contabilização do custo da produção e o valor líquido que essas famílias recebem, e a gente dividir pelo número de meses do ano pelo número de pessoas da família envolvido na atividade, é fácil de perceber que se está pagando muito pouco para os produtores”, observa Matos.

Os problemas gerados para as crianças e adolescentes são diversos, principalmente em relação à saúde. A produção de fumo é caracterizada pelo alto uso de adubos químicos e, principalmente, de agrotóxicos. Além disso, como o preço da arroba é definido pela qualidade da folha do fumo, muitos agricultores e famliares chegam a dormir dentro das estufas cuidando para que a temperatura não fique alta e resseque demais a folha. Ou seja, o veneno é absorvido duplamente pela família.

O assessor técnico da Fetraf (Federação dos Trabalhadores da Agricultora Familiar),Albino Gewehr, relata que cerca de 150 mil crianças trabalham nos plantios de fumo nos estados do Sul. Ele conta que “em algumas famílias as crianças não participam de forma alguma do trabalho, não por uma conscientização organizada, mas porque as pessoas já passaram por casos de intoxicação por agrotóxico, por passarem mal nas lavouras e com o passar dos anos a experiência mostra que as crianças não devem ir para a lavoura”.

Estudos realizados nos Estados Unidos demonstram que o contato com a folha do fumo verde produz uma série de mal-estares: tontura, tremedeira, fraqueza, ânsias de vômito. Existem ainda casos de pessoas que perdem parte da visão. Outras pesquisas apontam que o nível de nicotina no sangue de quem trabalha nas lavouras de fumo chega a ser o mesmo – ou até muitas vezes maior – do que o encontrado no próprio fumante.

Sistema integrado

No entanto, agricultores e Ministério Público afirmam que o problema do trabalho infantil traz consigo uma questão ainda mais profunda: os malefícios da produção integrada do fumo.

Albino Gewehr, relata que o sistema integrado imposto pelas indústrias do fumo prejudica muito os pequenos agricultores, que perdem autonomia na produção e na venda de sua matéria-prima. “É muito desigual esse contrato, é um conglomerado internacional que firma um contrato individual com cada fumicultor. Nós entendemos que os contratos não devem ser individuais e sim coletivos, firmados por grupos, associações, cooperativas, o que dá mais força aos produtores no momento da negociação e da resistência”, diz.

Pelo sistema integrado o agricultor fica totalmente refém das empresas, em sua maioria estrangeiras – como a Alliance One, ou nacionais com capital estrangeiro, como a Souza Cruz. Pelo contrato, a indústria fumageira faz a classificação da qualidade do fumo e, conseqüentemente, dita o preço, sem que o agricultor possa se opor. Mesmo que a indústria não compre todo o fumo produzido, o produtor não pode vender o excedente à outra empresa. Ou seja, o agricultor arca com todo o prejuízo.

Além disso, as empresas fumageiras vendem um pacote tecnológico ao produtor, que vai das sementes, passando pelos insumos químicos e por assistentes técnicos que ajudam na produção. No entanto, tudo isso é contabilizado depois como dívida que os agricultores precisam pagar às empresas. A lavoura de fumo ainda inverte a função da agricultura camponesa, já que os produtores deixam de plantar os alimentos para a subsistência e destinam todo o pedaço de terra que possuem ao fumo. Os poucos que ainda plantam para a própria família acabam contaminando a produção com o agrotóxico que utilizam no fumo.

As ações movidas pelo MPF nos estados do Paraná e Santa Catarina já estão em andamento desde janeiro deste ano. Para a procuradora paranaense Margareth Matos, o sistema é escravizante. “É como entendemos o sistema de integração. E as indústrias vendem como sendo uma estrutura criada para facilitar e ajudar os produtores. A estretura nada mais é do que uma forma de atrelar os produtores indefinidamente a esse sistema, endividando o produtor. Por isso que eu costumo dizer: não é um sistema de integração, mas é um sistema de servidão”, diz.

Suicídio

Outro malefício do sistema integrado e do uso de agrotóxicos que é muito pouco divulgado são os suicídios de pequenos produtores. O último caso ocorreu no ano passado, no município de Vale do Sol, no Rio Grande do Sul. A agricultora Eva da Silva, de 66 anos, cometeu suicidou em sua casa depois de saber que sofreria o “arresto”. O caso de Eva é típico: como a produção não cobriu os custos, ela não tinha dinheiro para pagar sua dívida com a transnacional Alliance One. Querendo recuperar seu investimento, a empresa entrou na Justiça e conseguiu o direito de “confiscar” o imóvel e demais bens da agricultora no valor da dívida – ou seja, o arresto.

O advogado Guilherme Eidt pesquisa o setor de fumo e destaca que o endividamento das famílias e a exposição constante a agrotóxicos são as maiores causas dos suicídios entre produtores de fumo. “Os agrotóxicos utilizados na cultura do fumo são organofosforados e apresentam um índice de acumulação no organismo elevado. Sujeito a pessoas que têm uma maior sensibilidade a manifestar picos de intoxicação logo após a aplicação de uma grande quantidade de veneno, de agrotóxicos, por exemplo, de apresentar sintomas de depressão muito elevados, porque eles inibem um neurotransmissor que interfere no humor da pessoa, no bem-estar, no funcionamento do organismo como um todo”, explica.

Uma pesquisa realizada pela Unisc (Universidade de Santa Cruz), em parceria com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e com a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), revela que entre 1999 e 2001, houve um aumento nos casos de suicídio na região produtora do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul. Só em Santa Cruz do Sul (RS), nesses três anos houve 46 casos de suicídio, enquanto que em Venâncio Aires (RS), foram 34 casos.

Eidt relata que a forma como as empresas atuam é muito semelhante em todos os locais, o que faz com que sejam parecidos os históricos de dívidas, doenças e suicídios. Ele afirma ainda que o Rio Grande do Sul é o estado que mais registra casos de suicídio porque é onde existe a maior produção. Dos 200 mil agricultores que produzem fumo no país, 100 mil estão concentrados no RS.

Organizações de pequenos agricultores e o próprio Governo Federal tentam mudar esta situação com programas que promovam a substituição da lavoura de fumo por culturas de subsistência. No entanto, o processo é muito lento. O integrante do MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) no RS, Vilson Rabuske, aponta que o principal problema é ainda o altos ganhos da lavoura. “Mesmo com a crise de preço do fumo que temos enfrentado nos últimos anos, ele ainda é mais rentável do que as outras produções camponesas. O que os pequenos agricultores precisam ter em mente é que a saúde e o bem-estar da família não tem preço e não vale todo o dinheiro que se ganha”, argumenta.