Milícias no Paraná continuam impunes

Da Chasque Agência de Notícias

Desde 2007, dois trabalhadores rurais Sem Terra foram executados e outro morreu durante confronto com milícias armadas no Paraná. O mais recente assassinato foi o do agricultor assentado Eli Dallemole, de 42 anos. Em Março, dois homens encapuzados invadiram a casa do trabalhador em Ortigueira e deram quatro tiros à queima roupa na frente da própria família.

Apesar das recorrentes denúncias de organizações de direitos humanos, nenhum dos acusados foi responsabilizado. Para a advogada da organização não-governamental Terra de Direitos, Gisele Cassano, a impunidade estimula que os fazendeiros não somente prossigam com as milícias como incrementem as ações. É o caso do “Caveirão do Agronegócio”. Confira a entrevista a seguir.

O que avançou nas denúncias feitas pela Terra de Direitos às polícias militar e federal?

Contra as milícias do Oeste do Paraná, que atacaram o acampamento da Via Campesina na área da transnacional Syngenta [21 de Outubro de 2007] em Santa Tereza do Oeste e resultou no assassinato do sem terra Valmir Mota de Oliveira [Keno], foi aberta uma investigação pela Polícia Militar do Paraná [Estadual] e também foram feitas denúncias na Polícia Federal. Inclusive após as investigações, a Polícia Federal cassou o registro de funcionamento da empresa de segurança NF, de Cascavel [que prestava segurança à Syngenta]. Segundo denúncias do próprio Ministério Público, ela arregimentava, contratava pessoas para que fizessem despejos e ações violentas e ilegais contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra [MST] da região.

Na polícia estadual, infelizmente foi oferecida denúncia contra alguns integrantes dessa milícia por formação de quadrilha e assassinato, mas os verdadeiros mandantes não foram investigados. Somente algumas pessoas que trabalhavam na empresa de segurança e o proprietário. Embora há suspeitas de que o ataque também teve o envolvimento de fazendeiros da região. Na Polícia Federal, as investigações encerraram com a cassação do registro de funcionamento da empresa. A competência de investigar as milícias é da Polícia Federal porque os grupos paramilitares são vedados pela Constituição.

As milícias atuam somente nas regiões Norte e Oeste?

Essas milícias hoje atuam em várias partes do Estado. No final dos anos 90, tivemos o ataque de várias milícias na região Noroeste do Paraná, principalmente nas cidades de Querência do Norte e Terra Rica. Na região de Cascavel, embora haja essa negativa de dizer que há milícias, a empresa de segurança NF que agora foi cassada também arregimentava pessoas. Tanto é que no dia 21 de Outubro de 2007, quando teve o ataque, ela arregimentou pessoas na região, deu armas para essas pessoas, alugou um micro-ônibus para levá-las até o local. Todas as pessoas estavam caracterizadas de preto para fazer o ataque. Ou seja, é uma organização com fins paramilitares e esse é o conceito de milícia: pessoas que se armam e querem fazer o papel do Estado. Quem tem que fazer esse papel repressor é o Estado e não milícias particulares. Elas não podem portar armas ou coisas do tipo.

Há pistoleiros livres que atacam no Estado?

O pistoleiro dificilmente ataca sozinho. Ele ataca sozinho, se for uma questão pessoal. Mas geralmente nessas questões de conflito ou envolvendo movimentos sociais, isso é algo articulado. E no Paraná funciona assim: há o fazendeiro, há o agenciador do pistoleiro e há o pistoleiro propriamente dito. E nesse caso que citei da região Noroeste, no final da década de 90, quando foi assassinado o sem terra Sebastião Camargo Filho, em Marilena [região Noroeste], todos eles são acusados, desde o pistoleiro, passando pelo agenciador até o fazendeiro. Eles também tinham uma agência de fachada, que diziam que era uma agência de investigação mas, que na verdade, não tinha nem registro – era uma agência que arregimentava as pessoas a mando de fazendeiros da região. Então, na verdade, não há a atuação de um único pistoleiro. Geralmente é uma ação articulada com outras pessoas e com outras ações. Esse caso da Syngenta [em 2007] não foi uma ação isolada também. Essa milícia já vinha agindo na região e já era responsável por outros ataques que ocorreram ali.

Como as milícias são formadas no Paraná?

As milícias ficaram fortes no final da década de 90 e agora está tendo essa volta. Tem uma ocupação em Terra Rica em que as milícias também estão agindo ali. Já foram presas pessoas que se identificaram como sendo do Mato Grosso, mas que teriam vindo para cá para fazer esse serviço. E tem atuação de milícias no Oeste que, aparentemente não são questões interligadas, mas também não dá para afirmar que são casos isolados.

No processo judicial do Sebastião Camargo Filho em 1998, Marilena, a gente comprova a existência das milícias porque os pistoleiros presos contaram todo o esquema de formação e ataque dos grupos armados. Eles contaram que iam para as fazendas e treinavam, falaram também que eram agenciados. Inclusive, os pistoleiros desse caso entraram com uma ação trabalhista contra a União Democracia Ruralista [UDR], assumindo que eram pistoleiros contratados pela organização e exigiam vínculo empregatício por prestarem serviços de pistolagem. E a juíza do Trabalho extinguiu a ação porque o objeto do contrato de trabalho era ilícito. Inclusive a juíza do Trabalho encaminhou essa ação para que fosse anexada no processo criminal e fossem tomadas as providências criminais. Mas nada foi feito em relação a isso.

No resgate histórico que fizeste, há algum motivo sobre a criação delas no Paraná?

O Paraná é um estado agrícola, com as regiões Noroeste e Norte sendo as mais conservadoras. É a agricultura das grandes áreas e da monocultura sem muita mecanização, mais tradicional. Nessas regiões os fazendeiros ainda têm um poder muito grande. Acredito que a atuação das milícias esteja relacionada a essa questão do poderio, do coronelismo, do jagunço que protege a propriedade do fazendeiro. E isso também acontece na região Oeste. Em Cascavel, por exemplo, que é uma cidade agrária, das festas agropecuárias, também é onde o peso do poder dos ruralistas é muito grande também. Utilizam métodos arcaicos de proteção à propriedade.

Falaste sobre um ressurgimento da ação dos grupos armados. Quando é que eles deixaram de existir?

Na verdade, eles nunca deixaram de existir. O que aconteceu é que a partir de 2003, quando houve o decréscimo de ocupações, essas milícias também pararam de agir. Quando os trabalhadores voltaram a ocupar terra como aconteceu em Terra Rica ou em Santa Tereza do Oeste, na Syngenta no ano passado, os ruralistas e as milícias voltam a se rearticular para combater as ocupações de terra.

As milícias também estão incrementando as suas atuações. Em outro caso que ocorreu na região Oeste em Novembro de 2007, em que a milícia despejou violentamente um acampamento do Movimento de Libertação Sem Terra [MLST] próximo à Cascavel, o grupo blindou um caminhão, deixando pequenas frestas abertas na parede da caçamba por onde era possível passar o cano do revólver, para poder fazer os ataques aos sem terra. A exemplo do “caveirão” usado pelas milícias de policiais no Rio de Janeiro para atacar periferias. Aqui até foi apelidado de “Caveirão do Agronegócio”. O veículo foi apreendido e constatou-se que era de um fazendeiro da região. Além disso, uma das pessoas presas naquele dia e que participou do ataque também responde pelo processo do caso da Syngenta e tem ligação com a empresa de segurança NF. Por isso é que falo que realmente há essa articulação entre os latifundiários em todo o Estado. Os ataques não são “pessoais”, contra o MST ou o MLST, mas sim contra qualquer movimento que lute pela reforma agrária e que tente mudar a estrutura agrária no Brasil, que tente democratizar a terra. Qualquer movimento nesse sentido, eles [milícias e fazendeiros] já querem rebater.

Existe alguma semelhança com as milícias urbanas?

Em 2003, foi criado no Paraná o PCR [Primeiro Comando Rural, criado na região Oeste do Paraná] que era organizado por um médico ruralista Humberto de Sá, que colocou o nome do grupo de PCR em alusão ao PCC [Primeiro Comando da Capital, em São Paulo]. A organização dizia que iria promover no Paraná a “paz no campo” a partir dessas operações [as milícias].

De que forma o governo e a Justiça se posicionam em relação às milícias?

Nesses casos das milícias, a gente fez inúmeras denúncias, tanto em nível estadual [Secretaria de Segurança Pública] quanto no federal [Ouvidoria Agrária Nacional, Incra e Polícia Federal] e nunca houve uma investigação efetiva sobre as milícias. E quando há, é parcial. Como no caso da Syngenta, em que somente os pistoleiros foram acusados. Se acusar somente o pistoleiro isso cria um sentimento de impunidade ao fazendeiro. Porque pistoleiro pode ser contratado a qualquer momento. Agora a questão é investigar e punir os mandantes. Enquanto esse sistema prevalecer, enquanto dominar a impunidade, as coisas não vão mudar nunca. Porque os fazendeiros vão se sentir cada vez mais fortes e fazendo cada vez mais ações ousadas, como este de Cascavel, em que alugaram um ônibus para levar os pistoleiros. Ou como o presidente da Sociedade Rural do Oeste [SRO], Alessandro Meneghel, que vai na mídia e diz que “se ocorrer a ocupação de terra vai morrer gente. Estou avisando”. E nada é feito.

O Ministério Público diz que não pode fazer nada porque não tem provas. Mas aí se o processo tem as provas, muda-se o foco, até mesmo chegando a criminalizar o movimento social. Foi o que aconteceu no caso da Syngenta que, de vítimas, os trabalhadores rurais acabaram sendo acusados pelo ataque que sofreram. A Izabel, uma camponesa que foi atingida, pelos pistoleiros, com um tiro no olho e acabou perdendo a visão, foi acusada de tentativa de homicídio. Ou seja, só se for homicídio contra ela mesma. É uma acusação absurda do Ministério Público. Ou seja, a vítima passa a ser réu para justificar a ação dos fazendeiros, que continuam impunes. Enquanto a gente tiver essa cultura da impunidade e achar que tem o poder econômico também pode ter as definições políticas relacionadas às questões agrárias, acredito que a estrutura não vai mudar e os movimentos sociais vão ser prejudicados cada vez mais.

Haveria má vontade da polícia ou da Justiça para investigar e julgar os casos?

Não sei se é má vontade ou se a gente já tem essa coisa arraigada de que o fazendeiro, quem tem o poder econômico, pode tudo, e de que os movimentos, que contestam essas questões, deveriam agir de outras formas sem ocupar terras. O Ministério Público já afirmou aqui no Paraná que os movimentos sociais deveriam agir dentro da legalidade. Mas uma legalidade que não é respeitada também pelos fazendeiros. Se pegar um processo em que, por exemplo, o MST é vítima, ele se arrasta. A gente tem casos aqui de 1993 [assassinato do sem terra Teixeirinha] e que o inquérito criminal ainda não foi concluído. Imagina, isso que o inquérito tem de 10 dias a um mês para ser concluído. Agora em outros casos, em que a acusação é contra um integrante do movimento social, em menos de seis tem uma sentença. Isso é uma inversão das questões, mas acredito que de cunho cultural. As milícias fazem com que as pessoas se amedrontem, tenham medo de lutar pelos seus direitos. Ainda mais quando isso ocorre e as vítimas vão buscar a polícia ou a Justiça e, ao invés de terem uma resposta para sua demanda, uma proteção, ocorre exatamente o contrário. Elas passam exatamente a ser os réus da história.