Um poeta para ser lembrado

Há 100 anos, o sertão dava à luz importante poeta, cantador e sabedor da vida sertaneja Antonio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré. Nascido no dia 5 de março de 1909, na pequena localidade de Serra de Santana, em Assaré, no sul do Ceará, desde cedo se mostrou habilidoso para cantorias que revelavam sua veia artística. Foi assim que, ainda menino, ganhou o apelido em alusão ao nome do pássaro de lindo canto.

Patativa dedicou sua vida à cultura popular nordestina, debruçando seu olhar sobre povo sofrido e marginalizado do sertão. Destacou-se como compositor, cantador, violeiro, improvisador e poeta tendo como principal fonte de inspiração a terra, utilizando-se da linguagem simples que dá tom à poesia dos grandes poetas.

Recheados de ritmo, de rima, métrica e estilo, seus versos possuem muita sonoridade e mantêm em equilíbrio uma fina sensibilidade e uma aguçada visão crítica sobre a realidade, sem cair em lugar comum. Sua poesia foi construída para ser ouvida e, por isso mesmo, é muito cantada.

A vida de Patativa foi como a de muitos. Fazia parte de uma família de agricultores pobres e, aos oito anos de idade, começou a trabalhar na roça para ajudar no sustento da casa, pois o pai já havia falecido. Sem deixar seu trabalho na roça, aos doze frequentou a sua primeira e única escola, onde aprendeu a ler e a escrever. Aos treze para quatorze anos começou a escrever seus primeiros versos.

Como poeta, Patativa escreveu o que viveu. Falou das suas mãos calejadas, da seca que atormenta a vida nordestina, da fartura de grãos em época de chuva. Cantou a Reforma Agrária como condição essencial de fixar o homem no campo com trabalho e dignidade. Dessa maneira, não foi por acaso que seu nome foi o escolhido para batizar uma das importantes brigadas do Setor de Cultura do MST, a Brigada de Teatro Patativa do Assaré.

Muitas são as razões para tal homenagem ao poeta. Como explica Felinto Procópio, o Mineirinho, integrante do setor de cultura do Movimento, “como nossa brigada tem uma proposta de teatro de resistência, nada melhor que batizá-la com o nome de quem construiu verdadeiras trincheiras em forma de versos e trovas”.

Mineirinho esclarece que Patativa foi a voz não só do sertanejo e dos trabalhadores rurais, mas de todos os injustiçados e oprimidos. Sua poesia tornou-se universal por representar o sentimento de uma classe social, a classe trabalhadora. Compunha enquanto manejava enxada e roçadeira, criando ovelhas e cabras sob o sol castigante. “Uma das coisas interessantes em Patativa é que ele canta a terra e a luta sobre ela de uma maneira autêntica. Ele fala sobre o aquilo que conhece de perto. Fala de maneira profunda do sentimento do povo nordestino, tanto na alegria quanto na dor”, ressalta.

Desigualdade não é natural

A injustiça vivida pelo povo pobre do sertão é tema recorrente na poesia de Patativa. Porém, ao abordá-la, passa ao largo de um discurso de resignação frente aos problemas sociais. “Patativa faz uma crítica muito bem feita à idéia de naturalidade das desigualdades sociais. Ele tinha clareza sobre as adversidades da seca, da condição do sertanejo, mas não entendia essa condição como algo comandado por uma ‘providência divina’. Sua poesia tem um forte sentimento telúrico. Patativa sai de um lugar de resignação e vai para o embate”, observa Lupércio Damasceno, cantador popular e membro do Setor de Cultura do MST de Sergipe.

Para Lupércio a combatividade presente nos versos de Patativa é mais um fator que lhe rendeu a homenagem feita pelo Movimento. “Nós do coletivo de cultura procuramos entender a cultura enquanto campo da práxis social. Tentamos quebrar essa divisão social do trabalho que estabelece quem pensa – age com o intelecto – e quem trabalha – faz com as mãos. E Patativa foi um intelectual orgânico”, acredita.

Agronegócio e indústria cultural

A força e importância do trabalho de lutadores como Patativa reforçam por qual motivo o MST deve sempre também carregar como bandeira a defesa das culturas brasileiras. Mineirinho explica que defender e propagar a poesia de Patativa e os saberes do sertanejo e do campo é parte de nossa luta por um outro modelo de desenvolvimento do campo. “Para o MST isso também é uma tarefa”, pontua.

Lupércio vai um pouco além. Para ele, o fortalecimento do agronegócio por meio da expansão do monocultivo mina também nossa riqueza cultural. “O monocultivo não provoca apenas um grande impacto ambiental, mas também um grande impacto cultural, pois o povo se manifesta culturalmente de acordo com a maneira de produzir sua sobrevivência, de organização social. Se nessa estrutura algo é alterado brutalmente, como vem acontecendo por meio do agronegócio, também as manifestações culturais antigas vão sendo substituídas por outras e esquecidas”, relata o cantador.

Para Lupércio, existe um casamento perfeito entre agronegócio e indústria cultural. É uma via de mão dupla: é preciso continuar destruíndo e substituindo a cultura original do sertanejo e do povo do campo para que ele possa ser remoldado e perca os laços com sua terra, abrindo um caminho sem grandes percalços para o agronegócio. Ao mesmo tempo, é preciso que o agronegócio avance sobre a terra do sertanejo para que seu meio de produção e organização se transforme em outro, modificando assim sua forma de se manifestar culturalmente e enfraquecendo sua resistência.

“Hoje em dia, assim que chega o inverno, os filhos dos trabalhadores do sertão de Sergipe botam as malas nas costas rumo às plantações de cana em São Paulo. Isso porque no inverno planta-se e não se colhe, pois a seca não deixa. Mas o rio São Francisco está ali do lado, guardado pelas máquinas do exército que protegem as obras de transposição. Ou seja, muda só a forma de exploração, mas a essência é a mesma que Patativa cantou em a Triste Partida”. Lupércio conclui que, no fim das contas, o nordestino continua a fazendo o mesmo percurso das antigas literaturas.