Fazenda Espírito Santo: de quem é a terra afinal?

Por Fábio Pessoa e Sérgio Martins*

Se quiséssemos apresentar, sob o ponto de vista da história agrária, os processos de aquisição de terras no estado do Pará, teríamos uma farta documentação. Recentemente, as disputas pela terra têm apresentado um alto grau de violência, que muitas vezes tiram o foco de uma questão importante: a quem pertence a terra afinal?

Não obstante o debate jurídico acerca do uso da terra e da sua dimensão social, no que se refere à fazenda Espírito Santo, palco recentemente de um episódio violento envolvendo seguranças contratados pela empresa Agropecuária Santa Bárbara e militantes do MST, ocorrido no dia 20 de abril, há um elemento que talvez tenha passado despercebido diante de tantos tiros disparados pelos seguranças.

A imprensa, notadamente a TV Liberal, afiliada à rede globo, deu ênfase a tese de confronto entre os “invasores”, representados pelos militantes do MST e os “seguranças”, no exercício da sagrada profissão de defesa da propriedade privada. Eis a questão! De quem é a propriedade? Como se deu sua aquisição? Há o respeito pela legislação ambiental no uso de seus recursos? Como veremos a seguir, ainda há “muita água pra passar debaixo dessa ponte”…

A sentença do Juiz da Vara Agrária de Redenção, que bloqueia as matrículas de propriedade da Fazenda Espírito Santo, entre outras pertencentes ao grupo de Daniel Dantas, é somente um sinal desse caso emblemático.

As terras da fazenda Espírito Santo pertencem, na verdade, ao Estado do Pará. Foram parar nas mãos de particulares por conta de um contrato para exploração exclusiva de castanha (no velho polígono dos Castanhais na região sul-sudeste do Estado). O título de aforamento foi repassado a ninguém menos que Benedito Mutran, que por conta de atos do próprio Estado do Pará, perdeu o mencionado título. Uma das razões, que alega o Estado, é que eles deixaram de explorar castanha, praticaram degradação ambiental (não existe mais floresta alguma na região) e passaram a se servir da agropecuária.

Assim os Mutran buscaram resgatar esse direito (que os juristas chamam de precário). E olha que curioso: conseguiram resgatar o título no apagar das luzes do governo Jatene, no dia 29/12/2006, sem autorização do governador e do congresso nacional, como manda a lei. O ato foi somente do então presidente do Iterpa (Instituto de Terras do Pará).

Não menos curioso é que o processo também dá conta de que seis meses antes de acontecer o resgate do título de aforamento, os Mutran assinaram com a Santa Bárbara Xinguara S/A um contrato de promessa de compra e venda, esperando, acredito, que estaria quase certo o tal resgate junto ao Iterpa, de uma maneira ou de outra.

Diante desses elementos é que o Juiz de Redenção, através de liminar, bloqueou as matriculas do imóvel junto ao cartório de imóveis da comarca da cidade, e espera-se agora que a ação civil publica seja devidamente julgada e ao final sejam estas terras retomadas, em definitivo, pelo Estado do Pará. É importante salientar, portanto, que a aquisição dessas terras, bem como sua funcionalidade, apresentam elementos suficientes para serem contestados.

Dessa maneira, o foco do confronto, dá lugar ao processo de aquisição de terras no Estado do Pará, responsável, direta e indiretamente, pela concessão e/ou aforamento de 21% dos seus 124,85 milhões de hectares. O restante está sob competência da União, divididas entre as áreas de unidades de conservação (61,7%) e terras indígenas (24,6%).

Assim como aconteceu no caso envolvendo a Vale do Rio Doce, o foco da imprensa se restringe ao “direito de ir e vir” (obstrução da ferrovia que liga Carajás ao Maranhão), o “direito de propriedade” (em relação a qualquer ocupação de terra), e à “desordem” ou “caos social” (em relação a simples presença do MST).

A reação do público, pelo menos entre aqueles que assinam comentários em jornais de grande circulação da cidade, demonstram, que pelo menos em parte, a intenção de desmoralização e criminalização do MST tem dado resultados. Frases do tipo “esses bandidos (MST) têm que morrer”, ou “a culpa é da governadora que não reprime esses marginais”, são cotidianamente expostas na grande mídia e nas conversas de botequim.

No entanto, é preciso dar o crédito necessário aos muitos aspectos envolvidos na questão. Confronto, desordem, bagunça e violência são faces distintas e articuladas de uma mesma lógica: o poder do Capital. As terras públicas, usufruídas como bens particulares, são historicamente uma realidade. Aqueles que ousam contrariar velhos interesses, são “jogados aos leões” da imprensa e da impunidade. E quem quiser, que conte outra.

*Fábio Pessoa é professor e militante do PT
Sérgio Martins é advogado e militante dos Direitos Humanos