“A natureza nos salvará”, afirma cientista

Do IHU-Online

Na Grã-Bretanha, durante a redação dos Enclosure Acts, Tomás Morus escreveu: “As ovelhas comem os homens”. A terra até então cultivada para o exclusivo sustento alimentar desaparecia pouco a pouco em favor de cultivos para produzir lã e matéria-prima destinada aos proprietários de terra e às fábricas.

“Hoje são as máquinas que comem os homens”, conta Vandana Shiva. “A terra está destinada à construção de rodovias, estacionamentos ou outras infra-estruturas. A extração do ferro e da bauxita está destruindo os ecossistemas, e as perfurações para extrair petróleo devoram a terra”.

Em seu último livro, a famosa cientista indiana lança um doloroso apelo resumido já no título: “Ritorno alla Terra” [Retorno à terra, em tradução livre] (Editora Fazi).

A reportagem é de Anais Ginori, publicada no jornal La Repubblica (12/5/09). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Com uma visão radical, Shiva prega uma drástica redução dos combustíveis fósseis, privilegiando energias renováveis ou até animais, o fim das monoculturas e dos transgênicos para se voltar a uma agricultura biodiversificada, não intensiva e sem fertilizantes químicos. A famosa cientista indiana, que participa junto com Ralph Nader e Jeremy Rifkin do International Forum on Globalization, gostaria que cada comunidade local voltasse a ter sua autossuficiência alimentar, chegando quase a abolir o “food-miles”, a viagem realizada pelos alimentos até o prato dos consumidores, que torna os agricultores dependentes das exportações e contribui para o aumento do gás carbônico.

“Há muitos especialistas que ainda me criticam, defendem que as minhas teorias são irreais e nos reportariam para a época pré-industrial”, admite Shiva, que na quinta-feira (14/5) estará em Bolonha para uma palestra do ciclo “Regina pecunia”, sob o título “A maldição dos pobres”. “Porém, a emergência alimentar é tal que finalmente se deverá levar em consideração também as soluções mais criativas”. O preço do trigo aumentou em 130% nos últimos dois anos; o do arroz duplicou. Em 2008, pela primeira vez há muito tempo, houve 33 revoltas populares no mundo por causa do aumento dos preços da produção de alimentos, e potências como a China iniciaram a compra de terrenos nos países do Terceiro Mundo para garantir o alimento às gerações futuras.

“A terra se tornou a área chave dos conflitos. É um recurso limitado, que não pode ser estendido. Os terrenos férteis estão desaparecendo em uma velocidade que a humanidade nunca conheceu antes”. O livro que Vandana Shiva apresentará na Feira de Turim na próxima sexta-feira (15/5) junto com o diretor Ermanno Olmi e o fundador do movimento Slow Food, Carlo Petrini, é uma acusação contra os “ecoimperialistas”: multinacionais e governos que ignoraram “as regras de Gaia para obedecer à lógica do lucro”.

A crise dos subprime e a recessão, diz, podem ser a oportunidade para reinventar as nossas economias. “Desenvolvemos uma economia financeira centenas de vezes superior aos valores dos bens e dos serviços reais produzidos no mundo. Nunca antes as ações de uma parte da humanidade ameaçaram a existência de toda a raça humana”.

Apesar disso, Vandana Shiva é otimista. O fato de que haja agora uma horta biológica e um presidente que se professa “green” na Casa Branca a tranquiliza. “Mas é preciso estar atentos às pseudossoluções, que são apenas paliativas”. Contrária, por exemplo, aos biocombustíveis, “que roubam terras dos agricultores e não resolvem a crise climática”, essa física indiana de 57 anos defende que é preciso “se libertar do ouro negro” e favorecer uma “transição do petróleo para a terra”.

“O aumento de catástrofes naturais ou o risco de epidemias como a gripe suína – continua – demonstram que o homem não pode negligenciar, como fez por dois séculos, a relação com a Mãe Natureza. Esquecemo-nos de ser cidadãos da Terra, e a crise climática é uma consequência do nosso distanciamento de um estilo de vida ecológico, justo e sustentável”.

Dura, peremptória, Vandana Shiva entrou muitas vezes em conflito com a comunidade científica e o governo indiano, como quando rejeitou a famosa “Revolução Verde” iniciada em 1966. Há 20 anos, teve uma outra ideia: conservar sementes de muitas plantas que corriam o risco de desaparecer “para criar um futuro diferente daquele previsto pela indústria biotecnológica”. Ao longo da sua evolução, explica, a humanidade se nutriu de cerca de 80 mil plantas comestíveis. Mais de três mil foram consumidas de uma maneira constante, mas agora dependemos só de oito cultivos (sobretudo de milho, soja, arroz e trigo) para produzir 75% dos alimentos mundiais.

“Nos bancos de sementes, temos culturas, como o milho, que podem suportar secas extremas, um tipo de arroz que alcança mais de cinco metros de altura e que pode sobreviver às enchentes da bacia do Ganges, um tipo que resiste à salinidade, que distribuímos depois do ciclone Orissa e do Tsunami”.

A fazenda guiada por Shiva (na Índia, na fronteira com o Nepal e o Tibete) se tornou um modelo de biodiversidade e de sustentabilidade econômica, mesmo que muitos especialistas duvidem que seja possível aplicá-la em grandes números. “Na nossa cooperativa agrícola – relata Shiva –, as culturas não têm doenças, a terra é resistente à seca, e o alimento produzido é delicioso. Os bois aram a terra e a fertilizam. Abolindo os combustíveis fósseis da nossa fazenda, descobrimos a verdadeira energia: a da micorriza [associação simbiótica de fungos e raízes de plantas] e das minhocas, das plantas e dos animais, todos alimentados pela energia do sol”.

Na fazenda, há pelo menos novas culturas. Navdanya significa, de fato, “novas sementes”, mas também “o novo dom”. Não importa quantas canções vocês têm no seu iPod, quantos automóveis há na garagem de vocês ou quantos livros há em suas prateleiras – conclui Vandana Shiva. O que resta da vida sem um terreno fértil?”. Talvez hoje, finalmente, alguém se disponha a ouvir essa pergunta.