Nossos 25 anos de teimosia

Por João Pedro Stedile
Da Revista Democracia Viva

Na primeira metade da década de 1960, a economia brasileira já demonstrava sinais do esgotamento e da estagnação do modelo de desenvolvimento apoiado no capital industrial. Naquele momento, o governo João Goulart e seu ministro Celso Furtado elaboraram a que talvez tenha sido a mais avançada proposta de reforma agrária de nosso país. Para ampliar o mercado interno e o abastecimento dos centros urbanos, a proposta limitava o tamanho máximo da propriedade da terra e desapropriava as áreas em torno das rodovias para garantir tanto o escoamento da produção como o acesso à energia e infraestrutura para os camponeses. O Plano de Reforma Agrária foi anunciado por João Goulart no comício da Central do Brasil, que foi um dos fatos desencadeadores do golpe de 1964.

O regime militar, instalado naquele ano, não apenas interrompeu a oportunidade mais efetiva que tivemos de democratizar o acesso à terra, como também estabeleceu uma saída para a crise do capital industrial brasileiro, ampliando a dependência ao capital internacional. Estabeleceu também um violento processo de mecanização, concentração de terras e êxodo rural. Era um período de expansão das empresas transnacionais para dominar mercado, controlar matérias-primas e explorar a mão-de-obra barata nos países periféricos.

De 1979 a 1984, os camponeses viviam um clima de ofensiva, no espírito geral impregnado na classe trabalhadora, e realizaram dezenas de ocupações de terra em todo o país. Os posseiros, os sem terra e os assalariados rurais perderam o medo – e foram à luta. Não queriam mais migrar para a cidade como bois marcham para o matadouro (na expressão de nosso saudoso poeta uruguaio Zitarroza).

Em janeiro de 1984, havia um processo de reascenso do movimento de massas no Brasil. A classe trabalhadora se reorganizava e acumulava forças orgânicas. Os partidos clandestinos já estavam na rua, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entre outros. Conquistamos uma anistia parcial, mas a maioria dos exilados já tinha voltado ao país. Já havia se formado o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat).

Amplos setores das igrejas cristãs ampliavam seu trabalho de formiguinha, formando consciências e núcleos de base em defesa dos pobres, inspirados pela Teologia da Libertação. Havia um entusiasmo em todo lugar, porque a ditadura estava sendo derrotada e a classe trabalhadora brasileira, na ofensiva, lutava e se organizava.

Origens

Fruto de tudo isso, nos reunimos em Cascavel, em janeiro de 1984, estimulados pelo trabalho
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), lideranças de lutas pela terra de 16 estados brasileiros.
E lá, depois de cinco dias de debates, discussões, reflexões coletivas, fundamos o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Os nossos objetivos eram claros: organizar um movimento de massas nacional, que pudesse conscientizar os camponeses para lutarem por terra, por reforma agrária (mudanças mais amplas na agricultura) e por uma sociedade mais justa e igualitária. Queríamos, enfim, combater a pobreza e a desigualdade social. A causa principal dessa situação no campo era a concentração da propriedade da terra, apelidada de latifúndio.

Não tínhamos a menor ideia se isso era possível. E nem quanto tempo levaríamos na busca de nossos objetivos. Passaram-se 25 anos, muito tempo. Foram anos de muitas mobilizações, lutas e de uma teimosia constante, de sempre lutarmos e nos mobilizarmos contra o latifúndio. Pagamos caro por essa teimosia. Durante o governo Collor, fomos duramente reprimidos, com a instalação até mesmo de um departamento especializado na Policia Federal para o combate aos sem terra. Depois, com a vitória do neoliberalismo do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), foi o
sinal verde para os latifundiários e suas polícias estaduais atacarem o movimento. Tivemos
em pouco tempo dois massacres: Corumbiara e Carajás. Ao longo desses anos, centenas de
trabalhadores rurais pagaram com sua própria vida o sonho da terra livre.

Mas seguimos a luta. Brecamos o neoliberalismo elegendo o governo Lula. Tínhamos esperança que a vitória eleitoral pudesse desencadear um novo reascenso do movimento de massas, e com isso a reforma agrária tivesse mais força para ser implementada. No entanto, não houve reforma agrária durante o governo Lula. Ao contrário, as forças do capital internacional e financeiro, por meio de suas empresas transnacionais, ampliaram seu controle sobre a agricultura brasileira.

E a fome continua

Hoje, a maior parte de nossas riquezas, produção e distribuição de mercadorias agrícolas está sob controle das empresas transnacionais, que se aliaram aos fazendeiros capitalistas e produziram o modelo de exploração do agronegócio, buscando consolidar uma matriz produtiva na agricultura baseada no uso intensivo de insumos industriais, como máquinas, fertilizantes químicos e agrotóxicos, tanto no Brasil como mundialmente.

De fato, uma das promessas se concretizou: a produtividade por hectare se multiplicou, aumentando quatro vezes no mundo. Mas a fome não acabou! E os famintos passaram de 80 para 950 milhões de pessoas. Agora, cerca de 70 países dependem das importações para alimentar seu povo. Na verdade, esse modelo serviu apenas para concentrar o controle da produção e do comércio agrícola mundial em torno de não mais de 30 grandes empresas transnacionais, como a Bunge, Cargill, ADM, Dreyfuss, Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Nestlé etc.

Com o fortalecimento do agronegócio, muitos de seus porta-vozes se apressaram a prenunciar nas colunas de jornalões burgueses que o MST se acabaria. Lêdo engano. A hegemonia do capital financeiro e das transnacionais sobre a agricultura não conseguiu, felizmente, acabar com o MST. Por um único motivo: o agronegócio não representa solução para os problemas dos milhões de pobres que vivem no meio rural. E o MST é a expressão da vontade de libertação desses pobres.

Mais recentemente, o grande capital internacional se articulou para solucionar a crise de sua matriz energética baseada no petróleo. Formou-se uma aliança diabólica entre as empresas petroleiras, automobilísticas e as transnacionais do agronegócio para atuarem nos países do Hemisfério Sul, com abundância de terra, sol e água, para propor a produção dos agrocombustíveis – que eles chamam enganadoramente de biocombustíveis, mesmo não tendo nada de vida.

Assim, nos últimos cinco anos, milhões de hectares antes cultivados para alimentos ou controlados por camponeses passaram para as mãos de grandes fazendeiros e empresas para implantar a monocultura de cana, soja, milho, palma africana, girassol… Tudo para produzir etanol ou óleo vegetal. É a repetição da manipulação da Revolução Verde. As melhores terras, mais próximas das grandes cidades e dos portos, deixaram de dar alimentos para produzir energia para os automóveis
da classe média dos Estados Unidos, da China e do Japão…

Até a queda do preço do petróleo, a taxa média de lucro na agricultura tinha subido de patamar e puxou consigo o preço médio de todos os produtos alimentícios, uma vez que o preço do etanol tem como parâmetro os preços do combustível. O preço dos alimentos representa de 60% a 80% da renda dos trabalhadores em países em desenvolvimento (segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação/FAO). Em 2008, a cesta básica no Brasil aumentou, em média, mais de 20% (segundo o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos/ Dieese). Ou seja, a população em geral consumidora de alimentos teve de ajudar a pagar a taxa média de lucro que os capitalistas e fazendeiros impuseram em função da produção
do etanol.

Em nosso país, o modelo agroexportador resultou também no bloqueio da reforma agrária, agora sob responsabilidade do governo Lula. A democratização do acesso à terra esbarra na transformação dos recursos naturais em reserva de expansão do agronegócio.

O governo dá prioridade à produção de monocultoras destinadas à exportação, sob controle das empresas transnacionais e do capital financeiro, para sustentar a política econômica neoliberal herdada de FHC. A política de crédito agrícola do governo não deixa dúvidas. O Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concedeu em empréstimos, apenas no ano
passado, mais de R$17,2 bilhões para empresas do agronegócio. O Banco do Brasil concedeu
mais de R$ 10 bilhões para apenas 20 empresas do agronegócio. Enquanto isso, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) tem previsão para a liberação de apenas R$ 7, 2 bilhões para a safra 2008/2009, alcançando 1,2 milhão de famílias de pequenos agricultores.

Nesse contexto, não há espaço para os camponeses, para a reforma agrária e para um modelo agrícola baseado na produção em pequenas e médias propriedades, voltadas para a produção de alimentos para o povo brasileiro.

Criminalização e novas formas de luta

O avanço das empresas transnacionais na agricultura está combinado com uma ofensiva articulada por parte do Poder Judiciário, da imprensa empresarial e do Estado para reprimir os movimentos sociais. Um exemplo são os ataques do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes, episódios do Rio Grande do Sul, quando o Ministério Público estadual e a governadora Yeda Crusius determinaram oficialmente a “eliminação” do MST e o fechamento das
escolas itinerantes.

O resultado desse quadro são os menores índices de desapropriação e assentamentos da história do Brasil. Em 2008, das 18.630 famílias oficialmente assentadas pelo governo federal, apenas 2.366 são novas famílias, enquanto o restante são ainda regularizações de projetos de assentamentos dos anos anteriores. É uma vergonha para aqueles que tinham um compromisso histórico com a reforma agrária.

A humanidade precisa encarar os alimentos como um direito de todo ser humano e deixar de tratá-los como mercadorias, para dar lucro às empresas transnacionais. Precisamos de políticas para estimular, em todos os países, o fortalecimento da produção camponesa, única forma de fixar as pessoas no interior e produzir alimentos sadios sem agrotóxicos.

No nosso país, estamos diante da oportunidade de realizar uma reforma agrária de novo tipo, que tenha caráter popular em sua natureza e interesses. Temos que implementar um novo modelo agrícola, baseado em uma matriz produtiva agroecológica e destinada à soberania alimentar, capaz não apenas de democratizar o acesso à terra e à produção, mas de impedir o processo que marcha para o colapso ambiental e alimentar.

Vamos dar seguimento a nossa luta pela reforma agrária e contra o atual modelo agrícola,
que impede a consolidação da pequena e média agricultura, transforma em mercadoria nossos recursos naturais e trata a agricultura e os alimentos como jogos de cassino. Podemos pregar para governantes surdos, mas aprendemos que sem mudanças radicais, na atual conjuntura, as contradições e os problemas sociais só aumentarão e, algum dia, vão explodir.

No entanto, a luta pela reforma agrária, que antes se baseava apenas na ocupação de terras do latifúndio, agora ficou mais complexa. Temos que lutar contra o capital, contra a dominação das empresas transnacionais. A reforma agrária deixou de ser aquela medida clássica: desapropriar grandes latifúndios e distribuir lotes para os pobres camponeses.

Agora, as mudanças no campo para combater a pobreza, a desigualdade e a concentração de riquezas dependem de mudança não só da propriedade da terra, mas também do modelo de produção. Se os inimigos são também as empresas internacionalizadas, que dominam os mercados mundiais, significa também que os camponeses dependerão cada vez mais das alianças com os trabalhadores da cidade para poder avançar nas suas conquistas. Felizmente, o MST adquiriu experiência nestes 25 anos: sabedoria necessária para desenvolver novos métodos e novas formas
de luta de massa que possam resolver os problemas do povo.