Sobre Mártires

Por Cláudia Ávila Na sexta-feira 21 de agosto, durante os procedimentos de desocupação de uma parte da Fazenda Southall, em São Gabriel, um integrante da Brigada Militar assassinou pelas costas, com tiro de espingarda calibre 12, um trabalhador rural integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST. Essa morte, entretanto, tratada cinicamente como tragédia inesperada, tem por trás de si todos os ingredientes que só a autorizam ser vista como surpresa pelos desavisados ou mal intencionados.

Por Cláudia Ávila

Na sexta-feira 21 de agosto, durante os procedimentos de desocupação de uma parte da Fazenda Southall, em São Gabriel, um integrante da Brigada Militar assassinou pelas costas, com tiro de espingarda calibre 12, um trabalhador rural integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra- MST.

Essa morte, entretanto, tratada cinicamente como tragédia inesperada, tem por trás de si todos os ingredientes que só a autorizam ser vista como surpresa pelos desavisados ou mal intencionados.

Há, todavia, ao menos dois fatores de radical importância que devem ser considerados. O primeiro deles é que, para os órgãos da Segurança Pública do estado, para o Ministério Público Estadual e para o Poder Judiciário, assim como para os órgãos responsáveis pelas questões agrárias do país, havia sobrado elementos caracterizadores de uma morte anunciada. Segundo, trata-se, aqui no Rio Grande do Sul, de uma morte que adquire tais repercussões, muito pelas circunstâncias em que ocorre, mas que tem antes de si outras mortes que foram ignoradas e um quadro de brutalidade institucional convenientemente velado. É de se considerar, também, uma teia de condicionamentos da opinião pública que resulta do encontro desses dois primeiros fatores com a atuação de setores da imprensa que omitem – quando não deformam – informações sobre tudo o que se refere à questão da reforma agrária e sobre o MST.

No que se refere ao primeiro fator, os níveis de tensão no campo, especialmente entre a Brigada Militar e MST, já há muito vinham aumentando, especialmente a partir do momento em que o Ministério Público, o Poder Judiciário e as Polícias começaram a submeter os movimentos sociais, especialmente o MST, à ótica da criminalização e, nesse processo, toda a sorte de arbitrariedades foram cometidas. Ao lado da verdadeira negativa de vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais aos trabalhadores rurais sem terra, desde sempre, passou-se a somar a negativa aos direitos civis e políticos. E não há qualquer exagero nessa afirmativa porque direitos como de reunião e de manifestação, o de ir e vir, assim como eleitorais, especialmente nos últimos três anos, passaram a ser alvos das ações do Ministério Público e acatadas pelo Poder Judiciário.

Às soluções que deveriam ser buscadas sob a perspectiva de conflito social foram preferidas as que criminalizam e encarceram. A Ata do Conselho Superior do Ministério Público Estadual que veio à tona já há algum tempo é um lapidar resumo de como o MST deixou de ser visto e tratado como um movimento social para ser tratado como organização criminosa. As ações judiciais – cíveis e criminais – propostas, especialmente pelo MPE – mas também pelo MPF -, e as decisões judiciais delas decorrentes – em grande medida em sede de liminares e cautelares –, somente atuaram, e atuam, como caldo de cultura para inflamar ainda mais os conflitos.

O segundo fator é ainda mais brutal. O Estado de Direito, aqui, restou solenemente desconsiderado. Desde os métodos de investigação, seja pelas polícias, seja pelo MPE – com e sem autorização do Judiciário -, até os procedimentos de desocupação, de busca e apreensão, de prisão etc., em cumprimento a liminares – prontamente concedidas pelo Poder Judiciário -, foram sempre operados com toda a espécie de excessos e, para além disso, com atos que fogem completamente do campo da legalidade. As queixas de violência institucional sempre foram conhecidas por essas mesmas instituições.

Para fixar-se o foco apenas nas situações mais recentes, denúncias de excessos da Brigada Militar têm sido permanentes, mas sobre elas foram sempre feitas vistas grossas. Situações de prática de tortura são inúmeras. O Comitê Estadual contra a Tortura apurou e concluiu pela ocorrência de prática de tortura em atuação da Brigada Militar envolvendo episódios nas imediações da Fazenda Guerra em Carazinho no norte do Estado. O Relatório do CET fez parte de um Inquérito instaurado pela Promotoria dos Direitos Humanos do Ministério Público Estadual. Esse inquérito, entretanto, foi retirado da Promotoria de Direitos Humanos e, encaminhado à Promotoria de Carazinho onde teria restado, pura e simplesmente, arquivado. E sucederam-se tais denúncias, uma após outra, em todas as atuações da Brigada Militar contra integrantes do MST.

No cenário recente, que envolve o assassinato agora cometido, já havia o prenúncio de que piores acontecimentos viriam. Uma semana antes, na desocupação da Prefeitura Municipal de São Gabriel, a atuação da Brigada foi, como de regra, violenta e descomensurada. Mas não bastando, após a desocupação do prédio, vários integrantes do MST foram presos e, no pátio de delegacia, para onde foram levados algemados, homens e mulheres foram brutalmente torturados por polícias da Brigada Militar, desde ofensas morais de toda ordem, passando por socos e pontapés, até choques elétricos com o uso das tão comemoradas armas elétricas não letais, disponibilizadas à Brigada Militar não faz sequer um mês. Esses fatos deram origem, após a presença de representantes do Comitê Estadual contra Tortura (CET) em São Gabriel, a Inquérito Policial aberto na DP daquele município. Os mesmos fatos estão sendo analisados pelo mesmo CET no âmbito de sua competência.

O cenário, agora, da morte de Elton Brum da Silva, só não foi igual a todos os anteriores porque o nível de violência e de arbitrariedades supera os demais. O agricultor foi morto com um disparo de uma espingarda calibre 12 pelas costas. As denúncias dos acampados de terem sido vítimas de violência e de prática de torturas de todas as ordens pela Brigada Militar na desocupação do dia 21 de agosto são incontáveis. Tortura em adolescente para obtenção de informações, ofensas morais a mulheres e crianças e manutenção de mulheres e homens em posições doloridas por horas, muitos postos propositalmente sobre formigueiros e, ainda, mais de quarenta feridos após a rendição. Mordidas de cachorros, cassetetes, patas de cavalo e espadas são apenas algumas das denúncias. Destruição de pertences, de alimentação e medicamentos dos integrantes do MST pelos policiais militares também aconteceram, como sempre ocorrera.

A ocupação do saguão do prédio da Prefeitura de São Gabriel e de parte da Fazenda Southall tinha por objetivo apenas reivindicar direitos. As condições dos assentados há quase um ano em São Gabriel são de absoluta precariedade. Mais de trezentas crianças estão sem escola desde a extinção das escolas itinerantes pela Secretaria da Educação por força de Termo de Ajuste de Conduta proposto pelo Ministério Público Estadual e não tiveram sua educação garantida pelo poder público. Não bastando, a falta de condições de saúde determinou a morte de três crianças.

A Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a Ouvidoria Agrária Nacional promoveram, em 11 de abril de 2008, encontro entre os comandos das polícias militares de todos os estados do qual resultou documento com diretrizes para operações de desocupação de áreas em conflito, e o estado do Rio Grande do Sul foi o único estado que se negou a aderir, por força de manifestação do então Comandante-Geral da Brigada Militar Cel. Medes.

Esse contexto todo foi ignorado. Sobre ele, solene silêncio da mídia. Agora, sobre corpo sem vida, o jornal Zero Hora afirma que o MST “ganha seu mártir”, em algo que soa como deboche.

Nessa senda de horrores, não há ganhos. Elton está morto tanto quanto as três crianças que morreram por falta de atendimento e como estão mortos tantos outros integrantes do MST pelos mesmos fatores de violência institucional e como estão sendo mortas mais de trezentas crianças sem escola – ou isso não é morte? Um agricultor morreu lutando por direitos e encontrou no chumbo cravado em seu corpo a resposta do Estado, apenas uma variante da mesma resposta levada a todos os demais que tombaram ante a omissão ou ação do Estado.

O paralelo com o caso do soldado Valdeci, invocado pelo jornal Zero Hora, é a tradução do mais capcioso dos argumentos. Mas se tem alguma utilidade, quem sabe seja para agora ver como se encerrará mais esse capítulo. O Ministério Público conseguiu condenar, naquele episódio, quatro integrantes do MST pelo quesito de que de alguma forma concorreram para que se desse a morte. Aguardemos para ver, caso surja o responsável pela morte de Elton, se a ele se imporá responder pelo homicídio; e, em não surgindo, quantos e tais irão responder, ao menos, pelo mesmo quesito.

Enquanto isso, outras mortes não menos insidiosas pela mão do Estado prosseguem no e pelo latifúndio. E nesse rastro, não se ganham mártires, perdem-se vidas.

Cláudia Ávila, advogada, especialista em Direitos Humanos.