Dos Sepés de ontem aos Sepés de hoje

Por Antonio Cechin* e Jacques Távora Alfonsin** O índio Sepé Tiaraju acaba de ser reconhecido, legalmente, como herói da pátria. Ele já tinha sido canonizado aqui no Estado, de fato, pelos índios e pelo povo sem-terra e sem-teto, até com a denominação que se deu a um município do Estado.

Por Antonio Cechin* e Jacques Távora Alfonsin**

O índio Sepé Tiaraju acaba de ser reconhecido, legalmente, como herói da pátria. Ele já tinha sido canonizado aqui no Estado, de fato, pelos índios e pelo povo sem-terra e sem-teto, até com a denominação que se deu a um município do Estado.

A lei, publicada terça-feira, 22, tem a seguinte redação: LEI Nº 12.032, DE 21 DE SETEMBRO DE 2009 DOU 22.09.2009 Inscreve o nome de Sepé Tiaraju no Livro dos Heróis da Pátria. O VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Em comemoração aos 250 (duzentos e cinquenta) anos da morte de Sepé Tiaraju, será inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, o nome de José Tiaraju, o Sepé Tiaraju, herói guarani missioneiro rio-grandense.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 21 de setembro de 2009; 188º da Independência e 121º da República. JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA. João Luiz Silva Ferreira.

Esse reconhecimento, tão atrasado como muitos da mesma espécie (recordem-se Zumbi e outros heróis do povo), deve-se ao fato de que mais de cinqüenta mil índios foram coagidos a se retirarem de suas posses centenárias, sobre extensas áreas interioranas do nosso Estado, por forças militares espanholas e portuguesas, no cumprimento de um tratado assinado em 1750, entre essas duas das maiores potências econômico-políticas e militares da época.

A resistência empreendida pelos índios comandados por Sepé Tiaraju, contrária a tal desterritorialização e conseqüente genocídio, desproporcionalmente inferiorizada em armas e cavalos diante das tropas colonizadoras, resultou no assassinato deste na Sanga da Bica, hoje São Gabriel, em 7 de fevereiro de 1756.

A história se encarregou de acumular versões diversas sobre as causas e as circunstâncias dessa morte; mesmo assim, a coragem e a determinação desse índio e seus guerreiros, nas batalhas em que se defrontaram com portugueses e espanhóis, disso parece não ter havido nenhum questionamento. Agora, que o passar do tempo decantou afirmações e negações sobre o que aconteceu, o heroísmo de Sepé tem sido celebrado com admiração e respeito, como a lei publicada dia 22 atesta. Infelizmente, também, com muita manipulação do seu significado social, tanto no que se relaciona com as/os índios, como no que se relaciona com todo o povo pobre do campo do nosso Estado e do país.

A explicação para isso, certamente, é a de que poderes e movimentos populares como os de Sepé, impulsionados por sentimentos libertários, depois que já foram enterrados e viraram pó, não constituem mais ameaça aos poderes vigentes no presente, por mais semelhantes que eles se revelem com os senhores do passado, e por mais identificados que se mostrem com os seus valores; hoje, é de todo conveniente não só estender sobre os heróis da nossa história todo um glamour de veneração, como se apoderar e domesticar ideologicamente sua biografia e seus ideais como se esses lhes fossem próprios.

Se os poucos guaranis, caigangues, charruas e outros descendentes da mesma etnia de Sepé, que ainda conseguem sobreviver no meio dessa “civilização” predominantemente branca que os dizimou e vive hoje aqui no nosso Estado, se os sem-terra e os sem-teto, em tudo semelhantes a eles, se insurgem agora contra as violências oficiais e extra-oficiais de que são vítimas, vale para esses o mesmo tratatamento dado a Sepé – não passam de criminosos, para quem pena e cadeia devem servir de resposta adequada.

Nem a morte dessa gente deve ficar excluída dessas respostas, como a que sofreu o sem-terra Elton Brum da Silva, há pouco mais de um mês, na mesma São Gabriel (!), sem que o inquérito policial aberto revele o nome do assassino, até agora, sabendo-se apenas tratar-se de um brigadiano.

Até uma cruz missioneira, erguida no mesmo município, para marcar os 250 anos do assassinato de Sepé, foi derrubada recentemente, sem dúvida para que a sua memória não sirva de inspiração para quem ouse colocar em causa o modo como a lei e a ordem, em nosso país, em nome da “segurança pública”, são criadas, interpretadas e executadas.

Isso prova como o poder de gerar preconceito, exclusão e sacrifício do povo trabalhador e pobre, é incapaz de ver nele qualquer resquício de dignidade e virtude. Essa cultura geral, rasteira e perniciosa, vai se armar no ano que vem, seguramente, contra a pretensão de se celebrar aqui no sul, os quatrocentos anos de chegada ao nosso continente das missões jesuíticas, que tanta influência exerceram sobre Sepé.

É que, entre prós e contras da presença e atuação jesuíticas no meio das/os índias/os, a herança histórica que algumas delas deixaram, incomodam bastante os poderes oficiais e extra-oficiais que vigem hoje, no nosso Estado. Disso dão sinal, por exemplo, regras de convivência social que os nativos impunham por sua própria iniciativa, semelhantes ao que a civilização branca denomina hoje de direito, lei, ordenamento jurídico. São de notável atualidade aquelas relacionadas com o respeito que as/os índios dedicavam à terra e à água, para lembrar apenas duas das principais fontes de vida da humanidade.

O falecido diretor da faculdade de Direito da Unisinos, desembargador Ruy Ruben Ruschel, dedicou um dos seus estudos, a respeito, bastando conferir o que ele lembra, sobre uma daquelas regras, para se medir em quanto o “direito indígena”, em vários dos seus aspectos, era superior ao direito branco, mesmo com o progresso “humano”, do qual o último se jacta portador: “No direito real indígena, distinguiam-se duas categorias de bens: o “tupambaé”, ou “coisas de Deus”, que consistiam na propriedade de uso coletivo, e o “abambaé” ou “coisas do homem”, que eram atribuídas ao usufruto individual (familiar). Mesmo as propriedades do abambaé, com exceção naturalmente dos bens de consumo, eram tão somente para disposição enquanto necessário. Inexistia o direito de sucessões. O jesuíta procurou mais tarde, estimular entre os indígenas o aparecimento da propriedade privada em caráter absoluto, tal como predominava então no mundo dos brancos, entretanto sem maior êxito pela falta de ambição do nativo. As matas (“montes” em espanhol) eram coletivas. As “estanzuelas”, ou seja, potreiros ou pequenas estâncias das proximidades dos povos, eram também de propriedade coletiva. Também o era todo o gado; e como se sabe, aqui no Rio Grande do Sul, havia milhões de bovinos, equinos e outros animais pertencentes aos indígenas. Os ervais, já um pouco mais afastados dos povos, bem como as estâncias, que se estendiam por toda a campanha gaúcha e uruguaia, integravam o “tupambaé”; eram de domínio comum de cada povo.”[1]

Uma tal devoção mística pela terra, atribuindo sua propriedade a Deus, seria incapaz de admiti-la como reles mercadoria, cercada pelo arame farpado do egoísmo, da exploração predatória que a envenena, perturbando até o clima do planeta, da ambição geradora de exclusão social que a separa da vida, por amor exclusivo do dinheiro, das necessidades humanas inadiáveis de pão e casa, como o homem branco de hoje faz.

Que o índio tinha e tem defeitos, isso somente os nostálgicos desconhecedores da história negam, mas que o tratamento e o cuidado por ele empreendidos, com a preservação da terra, da água, da natureza toda, deixa envergonhado o direito “branco”, não dá para disfarçar. Esse, do alto da sua distância do povo pobre, se é que conhece e respeita a história de Sepé, com ela não aprendeu nada, pois é incapaz de ver na carne e no osso dos sepés de hoje, sem-terra e sem-teto, as mesmas vítimas do poder que exerce, algumas exceções a parte, como exerciam espanhóis e portugueses no passado; não os compreende, nem se deixa interpelar por sua pobreza e, até, miséria.

Quando essas duras realidades humanas reagem, como fez Sepé, o Direito Penal “democrático” (?) de hoje, se encarrega de substituir as potências estrangeiras da sua época, as vezes com a mesma força, violência e crueldade, como aconteceu há pouco mais de um mês, na mesma terra em que São Sepé derramou o seu sangue e, como se vê, para esse tipo de direito, completamente em vão.

Não para toda aquela parte grande de gaúchos que continuam seguindo e reverenciando como santo esse herói, de que dão testemunho algumas estrofes de um canto popular sobre ele, cuja letra é atribuída a Barbosa Lessa, comparando-o, belamente, com uma estrela-guia que marca o céu do Rio Grande do Sul, e traz, como o índio, “uma cruz na testa, cicatriz sinal da fé”:

“Tiaraju morreu peleando / No arroio Caiboaté / Mas depois noutro combate / Todos viram São Sepé / Que vinha morrer de novo / Junto à gente Guarani / Pra embeber seu sangue todo / Neste chão onde nasci. / Mais um valente guerreiro / A morrer pelo seu pago / É por isso que seu nome Pro Rio Grande é sagrado / São Sepé subiu pro céu / E sua cruz ficou no azul / Cai a noite ela rebrilha/ Ele é o Cruzeiro do Sul.”

Nota

[1] Sistema jurídico dos povos missioneiros. In Direito e justiça na América Latina. Da Conquista à Coloniozação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 189.

* Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais.
**Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.