Os números do IBGE e a Reforma Agrária

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Por Antonio Cechin* e Jacques Távora**

A repercussão que estão alcançando os números que o IBGE publicou, sobre a realidade econômico-social do uso e do destino dos frutos e produtos da terra brasileira, confirma três fatos, cuidadosa e trabalhosamente escondidos pelos latifundiários do país e seus defensores.

O primeiro, de que a simples comparação do destino da produção de nossas terras, entre o que tem origem nos latifúndios e o que é gerado pela agricultura familiar (pequenas propriedades rurais), prova que o direito humano fundamental à alimentação do povo é garantido pela última e não pelos primeiros. Conforme análise da Folha, sobre a apuração feita pelo IBGE, ela chega a responder por “até 70% da produção” que integra a cesta-básica, assim superando, “em muitos casos, o agronegócio”. 70% do feijão, 87% da mandioca, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% do de aves. “Mesmo em lavouras voltadas para a exportação, a agricultura familiar tem um espaço de destaque. É o caso do milho, cultura na qual possuía uma participação de 46%. O mesmo ocorre com o café, cujo peso é de 38%.”

O segundo, de que a concentração da propriedade privada da terra no Brasil, em vez de diminuir, está aumentando, desgraçadamente. Em matéria assinada por Jacqueline Farid, o Estadão de 30 de setembro, demonstra: “A concentração e a desigualdade regional é comprovada pelo índice de Gini da estrutura agrária do país. Quanto mais perto esse índice está de 1, maior a concentração. Os dados mostram um agravamento da concentração de terra nos últimos 10 anos. O Censo do IBGE mostrou um Gini de 0,872 para a estrutura agrária brasileira, superior aos índices apurados nos anos de 1985 (0,857) e 1995 (0,856)” “De acordo com o Instituto, enquanto os estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares ocupam mais de 43% da área total.”

O terceiro talvez seja o pior. É o da superioridade manifesta que o poder dessa territorial injustiça exerce sobre a interpretação e a aplicação das leis do país, particularmente da reforma agrária. Se o capítulo que a Constituição Federal previu para a implementação dessa política pública fosse minimamente respeitado, a terra não estaria sofrendo aqui dos males que esses números revelam, cosmeticamente disfarçados pela elite agrária do país. Pela simples razão de que eles são incompatíveis com as que a mesma Constituição e suas leis complementares, entre as quais a do próprio Estatuto da Terra, determinam sobre a função social que um bem dessa importância precisa atender.

Por mais evidente que se mostre a inadequação social dessa conjuntura historicamente reincidente, entre o poder de conservação do que se comprova injusto, socialmente inadequado, e o do devido à emancipação da população trabalhadora, pobre e miserável do Brasil, seus direitos humanos fundamentais, sua dignidade e cidadania, o que se observa, de modo particular no Congresso Nacional, é uma tentativa reiterada de atribuir todos os males que nos afligem ao MST, CPT, sindicatos de trabalhadores rurais, ONGs que os apóiem e outras entidades que organizam e defendem agricultoras/es sem-terra.

A bancada ruralista invade os gabinetes dos políticos, das autoridades públicas e dos tribunais, das redações dos jornais e das revistas, para impor, no grito e na força se necessário for (como ocorreu com a introdução da palavra “produtiva” no art. 185 da Constituição Federal), a idéia de que o modelo de uso e de disposição que fazem da terra, além de não dever ser modificado, merece é acentuação e estímulo.

Mesmo assim, ela acaba de sofrer um duríssimo revés na tentativa de abrir nova CPI contra o MST. Nada menos do que quarenta e sete assinaturas de congressistas foram retiradas do pedido de abertura dessa CPI, tal a pressão popular contrária que se levantou no país, e no exterior, por movimentos sociais, lideranças religiosas, juristas e entidades de defesa dos direitos humanos.

Como a história mostra, ela vai voltar à carga porque o déficit social que o tipo de “crescimento econômico” (?) gerado pelos latifúndios que a mesma defende, é o custo exigido para manter os privilégios de quem dele se beneficia, devendo o MST e outros movimentos populares serem perseguidos e condenados por revelarem essa realidade e lutarem contra ela, por maior que seja o número dos mortos que esse confronto imponha, como o assassinato de Elton Brum da Silva acaba de provar.

Está enganado quem pensa vá terminar essa disposição das/os pobres organizados do campo brasileiro, mesmo que os responsáveis pelo seu sacrifício conte com o apoio da polícia e do Ministério Público do Rio Grande do Sul, mantendo em sigilo o nome do brigadiano que assassinou Elton.

Há valores ligados à vida, à dignidade humana e à cidadania, pelos quais vale a pena lutar. Se os prognósticos abertos pelos números revelados pelo IBGE, o que revelam, mesmo, é o incremento da mercantilização predatória do nosso solo, seus frutos desviados do povo deles necessitado e com direito aos mesmos, nem a cumplicidade de parte do Poder Público com essa injustiça, nem a manipulação ideológica deles, baseada no aumento da produção agropecuária, vai deixar de ser denunciada como discriminatória e excludente da maioria das/os trabalhadoras/os pobres do país.

A apuração desses males e dessa injustiça, sim, é que mereceria uma CPI rigorosa das suas causas e da punição rigorosa dos responsáveis pelos seus injustos efeitos.

*Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais.
**Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.