O MST, o STF e a função social da propriedade

Artigo do Procurador Federal e Coordenador-Geral Agrário da Procuradoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Bruno Rodrigues Arruda e Silva, contrapõe publicação da Folha de S. Paulo do dia 26 de outubro. Leia abaixo:

Artigo do Procurador Federal e Coordenador-Geral Agrário da Procuradoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Bruno Rodrigues Arruda e Silva, contrapõe publicação da Folha de S. Paulo do dia 26 de outubro. Leia abaixo:

Os recentes episódios envolvendo conflitos fundiários e disputas por CPIs no Congresso Nacional conduzem os olhares da Nação para um problema jamais solucionado em nossa história: a aviltante concentração de terras nas mãos de tão poucas pessoas. O Censo do IBGE demonstrou que apenas 1% das propriedades ocupa 43% da área total de imóveis rurais no País. Um dado alarmante, que, no entanto, é convenientemente esquecido por aqueles que insistem em tratar os conflitos agrários como resultado da “ação baderneira do MST”, e não como conseqüência da maior concentração fundiária do planeta. As últimas tentativas de criminalização dos movimentos sociais e de desmoralização da reforma agrária representam claríssima reação à promessa do Governo Federal de finalmente cumprir, vejam só, a lei que determina a atualização periódica dos índices de produtividade agrícola, os quais estão ainda baseados em indicadores econômicos de 1975.

Em meio a tantos ataques destacamos o texto publicado na Folha de S. Paulo do dia 26 de outubro passado (Tendência/Debates: “O MST e o STF”) pelo Sr. Fábio de Oliveira Luchési, advogado que possui conhecida atuação representando proprietários rurais em desapropriações. O texto faz uma severa crítica ao STF, acusando seus ministros de condenar em público as ações do MST, mas de incentivar as ocupações de terras ao supostamente relativizarem a proibição de desapropriação de imóveis rurais objeto de ocupação coletiva motivada por conflitos agrários, insculpida no art. 2º, § 6º, da Lei n.º 8629/93.

Chama atenção porque foi escrito por um advogado que possui interesse direto na revisão de uma jurisprudência que é francamente prejudicial aos interesses de seus clientes. Os seus argumentos ostentam um pecado capital: tratam a legislação brasileira como se ainda estivéssemos em pleno século XIX sob influência do Código Napoleônico, no qual o Estado era concebido unicamente para proteger a propriedade privada. Esse modelo de Estado ruiu, superado que foi pela era dos direitos sociais. A propriedade foi relativizada pela idéia de que a mesma possui uma função social. Esse princípio não foi bandeira da doutrina comunista, mas fruto de pensadores que enxergaram que o capitalismo não poderia sobreviver se continuasse sustentando o absolutismo do direito de propriedade.

O autor esquece que a Constituição consagrou a dignidade da pessoa humana, e não a propriedade privada, como seu princípio fundamental. Omite que o direito de propriedade foi garantido pela Lei Maior, desde que cumpra sua função social (art. 5º, XXIII, CF). A função social integra o conteúdo do direito de propriedade e representa o fundamento jurídico de seu reconhecimento e garantia, nas palavras do constitucionalista José Afonso da Silva.

Seu descumprimento ocasiona a perda da propriedade para o Estado, mediante o pagamento em títulos públicos resgatáveis em até 20 anos. A CF/88 imunizou dessa modalidade de desapropriação apenas as pequenas e médias propriedades rurais, desde que seu proprietário não possua outra, e os imóveis produtivos que cumprem sua função social.

O Sr. Luchési sustenta que o STF deveria, de forma indistinta, aplicar a proibição de desapropriação aos imóveis objeto de ocupação coletiva, especificamente àqueles ocupados depois da vistoria do Incra. Ao incursionar por essa linha, o autor sustenta uma interpretação superada por uma jurisprudência reiterada pelo STF há quase dez anos. O entendimento do Tribunal é que a ocupação apta a impedir a desapropriação é aquela capaz de comprometer a classificação do imóvel como produtivo, de forma que o proprietário não venha a ser prejudicado por um fato que lhe foi estranho. É necessário demonstrar a relação de causa e efeito entre a ocupação e o estado de improdutividade. Por essa razão, uma ocupação desenvolvida em porção ínfima do imóvel, ou que tenha ocorrido somente após a vistoria do INCRA, não tem força para anular uma desapropriação.

Esse entendimento nada mais representa do que uma interpretação da lei à luz da Constituição, já que nenhuma norma se aplica de forma isolada. A aplicação literal do dispositivo citado representaria a criação de uma nova hipótese de imunidade não prevista na Carta Magna, sancionando toda uma classe social e penalizando os excluídos da propriedade rural que reivindicam a reforma agrária mediante um prêmio ao proprietário negligente. O proprietário seria beneficiado com a imunidade e sequer seria cobrado quanto ao cumprimento da função social. O cuidado do Supremo em analisar a questão sob essa óptica foi o de preservar a constitucionalidade do texto legal, compatibilizando o direito de propriedade com o dever do Estado de implementar a sua função social por meio da reforma agrária.

O posicionamento do STF não envolve a defesa ou condenação dos movimentos sociais. Resulta, isto sim, da interpretação de um texto legal à luz dos valores, normas e princípios consagrados na Lei Fundamental.

Para que a Constituição não se torne um latifúndio de palavras improdutivas, é necessário que os ministros do Supremo mantenham a preocupação de atualizar o conteúdo das normas legais de acordo com os princípios da Carta Maior. A jurisprudência criticada pelo Sr. Luchési, longe de incentivar o confronto, harmoniza os diferentes direitos fundamentais envolvidos nos conflitos agrários.

Bruno Rodrigues Arruda e Silva, 28, é Procurador Federal e Coordenador-Geral Agrário da Procuradoria do Incra.

Publicado originalmente no Vermelho.