Haiti: ou a passagem pela dor intensa

Por Wagner Giron de La Torre* Se há algum povo que tem o direito de depurar suas faltas pelas catástrofes vivenciadas em sua história, esse povo é o haitiano. Das insurreições capitaneadas pelo escravo liberto Toussaint Louverture até a imagem dos últimos três presidentes norte-americanos reunidos, neste início de século XXI, a anunciarem a criação de um Fundo Global de ajuda humanitária ao Haiti, correram dois séculos de intervenções estrangeiras, devastações naturais e políticas, ditaduras assassinas, genocídios e corrupção.

Por Wagner Giron de La Torre*

Se há algum povo que tem o direito de depurar suas faltas pelas catástrofes vivenciadas em sua história, esse povo é o haitiano.

Das insurreições capitaneadas pelo escravo liberto Toussaint Louverture até a imagem dos últimos três presidentes norte-americanos reunidos, neste início de século XXI, a anunciarem a criação de um Fundo Global de ajuda humanitária ao Haiti, correram dois séculos de intervenções estrangeiras, devastações naturais e políticas, ditaduras assassinas, genocídios e corrupção.

Louverture liderou a luta pela independência do Haiti, país pioneiro na abolição da escravatura e primeira nação da América Latina a conquistar soberania.

O escravo insurgente pagou caro por sua ousadia: morreu nas masmorras napoleônicas em 1803, sem ver a sonhada emancipação haitiana, conquistada no ano seguinte por seus generais.

Mal liberto do jugo francês, o Haiti foi invadido no início do século XX pelos marines norte-americanos, que fundaram a Companhia de Açúcar Estadunidense HASCO, centralizando toda a produção e exportação do açúcar haitiano – principal atividade econômica do país – até 1987. Aliás, numa nação marcada pela miséria endêmica, todas as empresas norte-americanas gozaram de isenções fiscais durante todo o século XX.

Em 1957, no intuito de evitar a expansão de movimentos de transformações sociais e neutralizar a experiência revolucionária cubana no Haiti, o governo norte-americano financiou e investiu no poder Francois Duvalier, déspota conhecido como Papa Doc, mentor da papadocracia e responsável pela implantação de uma ditadura que perdurou por duas décadas de megalomania, fascismo, estupros e corrupção estrutural que legou ao povo haitiano um país devastado e um acervo de 30 mil pessoas assassinadas por sua milícia pessoal, os Tontons Macoutes.

Duvalier era tão fiel às ordens de Washington que em 1961 lançou um programa para derrubada das florestas naturais localizadas na parte oriental do Haiti, com forte subvenção americana, que investiu US$ 13,5 milhões (cerca de 45% do orçamento haitiano) para custear o “programa de combate ao comunismo”.

Papa Doc e seus patrões da Casa Branca acreditavam que essas florestas abrigavam um foco da guerrilha comunista.

Resultado: O Haiti, historicamente conhecido como a Pérola Verde do Caribe, transformou-se num grande deserto, fator a aprofundar a maldição da fome e miséria até hoje recaída sobre seu povo.
Tudo isso, agregado aos desastres naturais, fazem do povo haitiano um dos mais sofridos deste conturbado orbe terrestre.

Em 2004 os EUA resolveram seqüestrar o então presidente Jean-Bertrand Aristide, prestes a ser derrubado por intensa mobilização social que desejava reformas sociais no país, e, mais uma vez, impôs ao povo haitiano uma junta de títeres para “governar o país” à mercê da bula indicada por Washington.
No último cataclismo operado nestes tempos de renovada intervenção, os mortos foram contados aos milhares, incluindo referências mundiais na luta em prol da dignidade humana, como Zilda Arns.
Perdas irreparáveis, que deixam a comunidade global mais triste e órfã de sua própria humanidade.

O povo haitiano, em sua história pioneira de lutas libertárias, sempre teve de pagar alto preço pelo “delito imperdoável” de querer deter nas mãos as ondas de seu próprio destino.

Como se percebe, “as doações” do governo dos EUA não podem ser vistas como simples favores.

*Defensor Público do Estado de São Paulo e Coordenador da Defensoria Pública Regional de Taubaté.