“Houve todo um preparativo para pegar um trabalhador num momento de reunião”

Do Passa Palavra Em entrevista ao Passa Palavra, Altair Lavratti, coordenador estadual do MST em Santa Catarina, fala sobre as prisões “preventivas” ocorridas recentemente, o contexto de criminalização ao movimento e as perspectivas de continuidade do trabalho. Para começar, gostaríamos que você falasse sobre o contexto em que ocorreram as prisões e sobre essa movimentação que se iniciava em Imbituba.

Do Passa Palavra

Em entrevista ao Passa Palavra, Altair Lavratti, coordenador estadual do MST em Santa Catarina, fala sobre as prisões “preventivas” ocorridas recentemente, o contexto de criminalização ao movimento e as perspectivas de continuidade do trabalho.

Para começar, gostaríamos que você falasse sobre o contexto em que ocorreram as prisões e sobre essa movimentação que se iniciava em Imbituba.

A nossa atividade em Imbituba é um ato seqüencial. Nós acompanhamos e sempre fomos convidados pela associação dos trabalhadores rurais, a ACORDI [Associação Comunitária Rural de Imbituba], porque sempre tiveram em nós um espelho na luta pela terra. Como lá não é diferente, estão lutando e resistindo para estar na sua terra, que lhe foi roubada, sempre participamos com palestras, com debates, nas atividades do povo de lá. Desde 2001, na verdade, quando surgiu a ACORDI.

Então não é um fato novo. O que é novo é que a gente saiu da ACORDI e foi para os bairros carentes da cidade. Se quiser dar uma olhadinha no site do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] você vê um município que é o 30º em arrecadação no estado, por conta do porto, e que ao mesmo tempo tem 40% de sua população abaixo da linha de pobreza. Uma cidade que tem uma boa arrecadação, dos 293 municípios de Santa Catarina, ocupa o 30º lugar, mas, em contrapartida, é um povo empobrecido, vivendo na linha de miséria. No site do IBGE a gente encontra esses dados.

Aí tu te depara com esse absurdo: latifúndios improdutivos, terras que eram dessas famílias que estão nos bairros. Elas não conseguem mais produzir suas vidas nessas terras e ficam ali na expectativa das promessas de emprego que vêm, principalmente, sob a ótica da Zona de Processamento de Exportação [ZPE]. Praticamente todas as pessoas que estão nos bairros estão cadastradas, estão fichadas para emprego na ZPE, mas a ZPE só surge em momentos de eleições. Quando aparece uma eleição, dizem que a ZPE vai produzir emprego.

E daí ficam os fichamentos de trabalhadores e trabalhadoras. Eles até falam que ZPE é uma “Zona de Promessa de Emprego”, não uma Zona de Processamento de Exportação. Falam o que é certo.

Nesse contexto, nesse histórico de negação do espaço de produção da vida e aglomeração das famílias em bairros pobres, onde existe prostituição infantil, falta de moradia, de alimentação… Você sabe o que é um bairro empobrecido, não tem uma política pública que funcione. A gente não pode concordar com esse tipo de Estado Democrático de Direito, nosso papel foi dialogar com o povo para que as pessoas se sintam sujeitos capazes de se organizar e lutar.

Quando nós começamos a atuar nos bairros, a gente sabe que as primeiras denúncias partiram das famílias ligadas ao prefeito. “Olha, o Movimento Sem Terra tá por aí, o Movimento Sem Terra tá chegando”. E aí o que faz o prefeito? O prefeito faz aquela juntada das polícias para ver o que fazer, numa iniciativa direta da prefeitura, da administração pública. Todo esse processo de retirada das famílias de suas terras partiu do poder municipal.

De posse dessas desigualdades, a gente foi dialogar. E, dialogando, você mexe com quem não tem interesse nenhum na presença de trabalhador em processo de organização.

E aí começou uma perseguição ao movimento? Essa perseguição era direta?

Começou uma perseguição a nós, lideranças, que estávamos ali. Uma perseguição direta, visível, a ponto de eu trocar de carro porque sabíamos que estavam seguindo o primeiro carro que tínhamos. E na nossa ida para casa sempre encontrávamos duas viaturas na viagem, mais dois pontos policiais que estavam ligados.

Os P2 [policiais a paisana] nós descobrimos já na primeira reunião. Mas aí o que acontece? A gente sabia da existência de P2 na reunião. Dialogamos, conversamos, fomos buscar informações. E chegamos à conclusão de que se nós pararmos com o trabalho, não vamos fazer nada lá. Então, se eles estão nos perseguindo, que vão. O importante é que as famílias venham e a gente dialogue.

O que nós estávamos fazendo eram umas aulinhas de história, sobre o que é o Movimento Sem Terra, seus princípios, o que se quer, qual é o nosso inimigo, por que é inimigo…

Esse era o trabalho com as famílias?

Sim, era o trabalho com as famílias. A gente até retratou os policiais como trabalhadores, o que é real. São trabalhadores, têm famílias, então não tem porque a gente estar criando conflito aqui. O nosso inimigo é bem maior.

E, mesmo sabendo da existência deles, a gente não parou com o trabalho, e a gente sabia que um momento ou outro, cedo ou tarde, eles viriam até nós. Mas o que eu esperava era que eles iriam reagir com violência, não com processo de prisão, o que no fim deu esse caldo todo, criou essa efervescência.

E quais são os motivos alegados para as prisões?

Formação de quadrilha e propenso esbulho possessório.

A participação do Ministério Público foi bastante controversa, não é verdade?

Com certeza. Temos várias coisas para questionar. A participação do Ministério Público, por exemplo. Qual é o papel do Ministério Público no Estado de Santa Catarina?

Eu fiquei com a minha mochila detida até sexta-feira, dia do ato público [05 de fevereiro], e quando fui buscar conversamos com um promotor: “Gostaríamos que vocês fossem nos bairros, convidassem as polícias militar e civil também para ver a situação em que as famílias estão e dar conta de resolver. Com a Constituição embaixo do braço. Pega os princípios constitucionais. Qual é o dever do Estado Democrático de Direito, em termos de moradia, saúde, educação e trabalho?”. No sentido de dizer para ele que o papel do Ministério Público é outro, pelo que a gente entende. Que peguem a carta magna e façam jus aos preceitos.

Vieram com a idéia de que nós não podemos ser violentos, resolver as coisas com violência. Nós não estávamos fazendo trabalho de violência absolutamente nenhuma.

Em relação às prisões, gostaria que você destacasse alguns pontos. Porque a gente sabe que vocês foram isolados de forma ilegal e levados para outros municípios.

Sim. Principalmente relativo à Marlene. Ela é de Imbituba, não estava nas ações. Uma mãe, grávida, com gravidez de risco. Tiraram do seu município e levaram para Criciúma, o mais distante de todos nós. As ilegalidades aí são brutais, são cruéis. No caso do Rui, ele se entregou porque se ele não demonstra que está aí presente, eles iam arrombar a casa dele. E a minha prisão foi essa de pegar um “Lalau” da vida, quer dizer, pro “Lalau” não fizeram isso, foi coisa para pegar um grande bandido.

Foram trinta policiais. A mídia, RBS, Diário Catarinense, entraram junto com os policiais. Fizeram esse papel de bandidos também, de ser coniventes com essa ação. A prisão num espaço de reunião, num espaço de diálogo, de conversa. Nos proíbem de fazer reunião. A Constituição permite. Se é ela que serve de base para o Estado Democrático de Direito, não é respeitada… Eu fiquei incomunicável das nove horas da noite, horário em que fui pego, até as sete, oito da manhã do dia seguinte. Das nove da noite até sete, oito da manhã.

Incomunicável?

Incomunicável. Não me deixaram telefonar pra casa, nem pro advogado. Quando perguntei para onde é que eu estava indo, responderam “daqui a pouco a gente vai saber”, uma resposta bruta, bem de militar mesmo. Foi cárcere privado, aquela emboscada seca. Houve todo um preparativo para pegar um trabalhador num momento de reunião.

A CPT até lançou uma nota sobre a espetacularização das prisões.

Sim. Quando foi com o Daniel Dantas o STF aprovou a proibição do uso de algema e agora, nesse caso comprovado de excesso na atuação policial, eles não têm nada a declarar.

A ilegalidade dos fatos… Bom, você imagina, ao ponto da Associação dos Delegados Federais lançar nota questionando a legalidade da ação. Saltou aos olhos que aquilo ali foi um ato totalmente ilegal, preparado pelo mando da elite instalada ali em Imbituba.

Gostaríamos que você falasse dos apoios recebidos e o que o movimento está planejando fazer agora em resposta.

O que impressionou realmente foi esse levante feito pelas entidades amigas, companheiras de luta. A ponto de que lá no presídio a frente de massa continuou. Eu fiquei com os presos em regime semi-aberto, e eles perguntavam: “meu deus, mas você é tão importante assim?”. “Não, não, o que é importante aqui é a ação, é o movimento social”. É isso que se questiona, é o que está em jogo.

O que a mídia está tentando fazer é criminalizar o movimento social. E o que as entidades fizeram, num ato relâmpago, foi prestar esse grande apoio à luta. Isso foi impressionante, nos emociona e nos deixa em débito com a companheirada, com um reconhecimento profundo dessa intervenção de solidariedade.

Nós ficamos dois dias presos até que o habeas corpus conseguiu nos sacar da prisão. Nesse tempo, muitos profissionais da área do direito assinaram uma moção, uma nota de apoio e repúdio à ação da Polícia Militar, do Ministério Público e da administração pública de Imbituba.

Na seqüência nós pensamos nesse ato de esclarecimento à população, principalmente de Imbituba. Também no sentido de dizer às famílias, com quem dialogamos lá naquele município, que não se amedrontassem com as ameaças que o município faz com a sobrecarga de fardas que trafegam, que passam pelos bairros, e as ameaças verbais, no sentido de “Calem, fiquem no lugar onde estão. Não deixem ninguém vir aqui porque nós temos o poder”.

O ato foi brilhante no sentido de que comunicamos a população, houve uma participação grande de entidades apoiadoras, que continuaram a luta, continuaram na marcha. E a gente conseguiu entrar na cidade, fomos até o centro de Imbituba e a acolhida da comunidade foi algo brilhante.

É certo que algumas pessoas olhavam pelas janelas, amedrontadas. Mas isso tudo a gente compreende numa sociedade onde há tanta repressão e imposição do medo… Mas vimos mesmo essas pessoas, apesar de um pouco recuadas, participarem.

Foi feita uma bela panfletagem e acredito que o esclarecimento foi feito.

Mas, acima de tudo, o Movimento Sem Terra ficou cravado muito mais forte agora do que antes. E eu acredito que não precisa militantes de fora ir organizar o povo lá. Porque as pessoas que estavam assumindo as reuniões, que estavam junto nas reuniões, estavam ali. Vieram abraçar, vieram com sua solidariedade, com seu compromisso.

Lideranças da cidade, dos bairros, que estavam escondidas, amedrontadas, e viram: “Opa, se a gente organizadamente lutar, tem um poder aí que é inegável”. Sentiram que é possível encarar as falcatruas, as sacanagens que faz o poder municipal. Se nós saímos em marcha… Ficou gente, povo comprometido lá para dar continuidade.

É um município que a gente tem que continuar a luta de organização, tem que continuar. Não dá pra gente se conformar, com certeza vamos dar continuidade e aquelas terras têm que cumprir sua função social. A Constituição, no artigo 186, esclarece bem o que é a função social da propriedade. A terra não se presta mais para aquela coisa absoluta, “é minha, faço o que quero, ninguém me manda”. Terra hoje tem que estar vinculada com o ser social.

Para fechar, você quer complementar com mais alguma coisa, deixar alguma mensagem?

Eu acho que esse início de ano demonstra que a ação da elite brasileira de criminalizar os movimentos sociais toma corpo e nos dá o recado. Mas não nos calarão. A gente não pode se calar.

Se faz necessário pensar um pouquinho mais longe. Com tantas outras famílias que não conseguem se alimentar, que não conseguem lugar para morar, o nosso compromisso é fazer com que outros adentrem e passem a ser sujeitos da história e não meras peças de manipulação.