Unac: um retrato da luta camponesa em Moçambique

Do Brasil de Fato Viver em Moçambique é presenciar uma história recente. O país, independente desde 1975 do domínio português, ainda dá passos iniciais na cidadania. É somente nos anos 90 que começam as eleições multipartidárias e é nesta mesma década que é aprovada a Lei de Terras, que reforça a posse estatal da propriedade rural. Dentro deste fervor de mudanças, está o campesinato, peça chave do desenvolvimento do país e da organização popular.

Do Brasil de Fato

Viver em Moçambique é presenciar uma história recente. O país, independente desde 1975 do domínio português, ainda dá passos iniciais na cidadania. É somente nos anos 90 que começam as eleições multipartidárias e é nesta mesma década que é aprovada a Lei de Terras, que reforça a posse estatal da propriedade rural. Dentro deste fervor de mudanças, está o campesinato, peça chave do desenvolvimento do país e da organização popular.

Atravessando todas as províncias de Moçambique, o movimento social que reúne os camponeses é a União Nacional dos Camponeses, a Unac. Em conversa com o seu presidente, Renaldo Chingore João, e com o presidente da Mesa da Assembleia Geral da Unac, Ismael Ossumani, pode-se fazer um retrato dos passos da organização, das experiências que a inspiraram e dos desafios colocados ao país.

Brasil de Fato – Dentro da história de Moçambique, onde e como se encontra a criação de um movimento nacional dos camponeses, no caso, a Unac?

Renaldo Chingore João – A Unac surgiu da vontade dos próprios camponeses. Em Moçambique, os trabalhadores rurais começaram a se organizar desde o tempo colonial e com a independência a organização foi fortalecida, pois o movimento de libertação nacional opera de forma coletiva nas zonas do país e esta experiência foi absorvida pelas comunidades do campo. Na fase de transição entre o governo colonial e a independência, com a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) liderando, viu-se a oportunidade dos camponeses de se beneficiar do trabalho no campo de forma organizada, pois as famílias portuguesas, com a independência, abandonaram as terras do país. Para fortalecer o campesinato, a Frelimo investiu na criação de cooperativas. O governo se viu na obrigação de dar assistência aos camponeses, como o financiamento nos bancos, e o resultado foi uma boa produção no setor familiar e a criação de algumas empresas estatais. Em 1987, o governo foi forçado a mudar a política, coordenando a política nacional com a internacional, voltando a nossa economia para o mercado, com benefício do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Com novas obrigações, Moçambique teve que cumprir novas regras e assim o governo começou a recuar no apoio às cooperativas camponesas e passou a abrir espaço para o setor privado. Essa situação levou as organizações a promoverem uma Assembleia Geral para debater e refletir em conjunto como seria o futuro das cooperativas sem o apoio do governo. Essa assembleia se transformou em uma reunião nacional, onde os camponeses decidiram pela criação de uma organização para representar todos os camponeses do país, o Núcleo de Apoio às Cooperativas do País. Seis anos depois, após o fortalecimento das ideias, funda-se a Unac.

Então a mudança da política da Frelimo fez os camponeses repensarem a sua forma de organização.

Renaldo – Exatamente.

Ismael Ossumani – A Frelimo começou a ter uma orientação no sentido do socialismo, embora enquanto movimento de libertação isto não estivesse colocado. A inspiração no socialismo também se deu pelo fato de Portugal ser um país do ocidente – para conseguir a libertação, a Frelimo foi atrás do apoio do bloco da União Soviética. Além disso, a juventude era influenciada pelas revoluções da época, de Mao Tsé-Tung [China] e de Fidel Castro [Cuba]. Assim, a resposta de Portugal foi propagandear contra os sistemas comunistas. Em 1977, a Frelimo transforma-se em um partido marxista-leninista declaradamente. Aí começa uma nova etapa: aquilo que era um movimento, uma frente ampla, começa a fazer uma seleção a partir da ideologia. A oposição a este movimento, que converge na Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), é protagonizada pela Rodésia (atual Zimbábue) e pela África do Sul do apartheid, na África, porque a libertação de Moçambique era uma má influência para os povos de seus países. O apoio se completava com os portugueses, que tinham interesses em continuar dominando o país. É diante desta conjuntura que Moçambique não encontra outra saída para ter negociações de paz a não ser abrindo o seu mercado, mudando a política. O que moveu esta guerra foi o capitalismo e tivemos que aderir ao Banco Central e ao FMI para obtermos a paz. Essa mudança acabou por questionar se as cooperativas pertenciam ao modelo socialista ou se eram possíveis no capitalismo, muitas pessoas temiam que este sistema acabasse. Como sabemos, o capitalismo suporta essa forma organizativa e amadurecemos isso em seminários sobre o futuro do cooperativismo em Moçambique, envolvendo companheiros de todas as províncias do país.

Nestas discussões já havia uma clareza do modelo de agricultura a ser defendido para o país?

Ismael – Numa primeira fase não havia muita clareza do modelo de agricultura, o que estava sempre em nossa mente era o apoio aos camponeses, a defesa da terra, a busca de projetos de financiamento. Depois do acordo de paz começa o programa de reassentamento da população refugiada e houve algumas ONGs que se engajaram nesta causa, mas, durante o período da guerra, a maior parte das organizações estavam voltadas para as ajudas humanitárias, como a distribuição de comidas e roupas. Uma das poucas entidades que não estavam envolvidas nesta parte humanitária e sim em como fazer os camponeses produzirem era a Unac. Poucas organizações tinham experiência de trabalhar com o campesinato para o desenvolvimento, a maioria trabalhava com o viés da ajuda humanitária. A certa altura percebemos que os próprios camponeses não tinham muita clareza da diferença entre o movimento ao qual pertencia e as ONGs de apoios. Começamos a fazer uma reflexão de que o movimento devia ser de luta, de defesa dos camponeses, mas nos tornamos, sem querer, em uma organização que, na prática, na maioria das vezes, se voltava para atividades similares às das ONGs.

Quais outras experiências de organização ajudaram a Unac a trilhar pelo caminho diferente das ONGs?

Ismael – Trabalhávamos no debate sobre a lei de terra quando, em 1998, tivemos uma visita do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra [MST]. Tínhamos ido a alguns países africanos, como Senegal e Zimbábue, mas não tínhamos encontrado uma organização de camponeses como buscávamos construir. Já tínhamos ouvido falar do MST, mas faltava uma aproximação. Quando conhecemos o movimento, pensamos: é isso que sonhamos fazer, não queremos parecer com uma ONG. Infelizmente, eles [o MST] estavam a milhares de quilômetros e não tínhamos conhecido antes – tínhamos a mesma língua, mas a distância nos separou. Foi então que fizemos a primeira Assembleia Geral da Unac, preparada para fortalecer o viés de movimento social da Unac em 2000 e aí decidimos elaborar o plano estratégico, agora incorporando mais um caráter de movimento, e não de ONG, sem aquele assistencialismo que por vezes nós incorríamos. Com o plano estratégico e com a aproximação que tivemos com o MST e, através do MST, com a Via Campesina, tivemos a consciência de que estávamos sendo empurrado para uma forma de organização diferente daquela que por vezes reproduzimos, e com o espelho do MST percebemos que não estávamos a inventar algo que não existia: existia, apenas não conhecíamos ainda o modelo.

A lei das terras manteve a herança do governo de Samora Machel, líder do movimento de libertação e primeiro presidente do país, com a persistência da terra enquanto propriedade do Estado. Na prática, isto vigora até os dias atuais?

Renaldo – Para nós, foi uma grande vitória que a terra fosse propriedade do Estado, porque, caso contrário, os camponeses não teriam condições de ter acesso a ela. Nesse modo de propriedade rural, os camponeses têm o direito de ocupação mesmo sem título, além de respeitar o uso costumeiro, que é quando a comunidade tem algumas áreas de reserva onde fazem cemitérios, por exemplo. Isso consideramos uma vantagem. Mas essa lei está sendo violada, devido a pressões de algumas instituições e empresas. A terra em Moçambique não se vende, mas nas zonas urbanas estão a vender. E quando vamos em alguma comunidade, algumas empresas obrigam os camponeses a saírem de suas terras, o que causa transtorno, visto que eles já tinham construído seus cultivos e suas casas lá. A figura do Estado, nestes casos, serve para endossar a postura de que os camponeses precisam sair daquela área, devido aos interesses do governo.

Ismael – Veja que a lei de terras foi aprovada em 1997, mesmo o país tendo virado para a economia capitalista dez anos antes, em 1987. O que aconteceu foi que a força do capitalismo ainda não havia entrado dentro da Frelimo neste meio tempo – ainda havia alguma veia revolucionária dentro do partido – e isso fez com que o direito pela ocupação, por exemplo, fosse consagrado, fazendo com que o camponês que comprove estar há 10 anos na terra seja o titular desta, não podendo ser retirado. Essa foi a forma de defender os camponeses que não tinham dinheiro para arcar com os custos dos títulos. Se houvesse alguém de fora, que quisesse a terra, o governo precisaria consultar a comunidade para atribuir terra – ou seja, o Estado tem a posse da terra, mas a gestão é dividida com a comunidade, partindo do princípio de que cada uma tem sua identidade e deve ser ouvida sobre os impactos nela. Pouco a pouco, as forças do capitalismo começam a prevalecer e inicia-se a pressão sobre a terra, acarretando na violação das terras. O primeiro discurso dos governos passa a ser dos benefícios que trariam a implementação de algo externo à comunidade, influenciando os camponeses com o discurso do desenvolvimento. Em contrapartida, as políticas relacionadas ao setor familiar estavam fracas ou inexistentes. Ou seja, o camponês pode até ter a terra, mas cessou-se as políticas para ajudar a família camponesa. Então, o pensamento passa a ser: é melhor vir essa empresa que dá emprego do que ficar aqui sem investimento. Assim, a propaganda da empresa é feita e, sem violar a lei, participando do princípio que a comunidade foi consultada, abre o espaço para a entrada das empresas. Mas não se faz a análise sobre as causas que fizeram esta comunidade concordar, e isto é uma expressão da força do capital.

Esta força do capital pode vir a resultar em uma privatização das terras?

Ismael – Agora com o etanol e os agrocombustíveis começa uma maior busca por terra em Moçambique e a tendência é esta força por em prova a lei de terras. Então nos encontramos nesta situação: ainda há terras para os camponeses por causa do estágio de desenvolvimento do país, mas através da forma como começam a entrar as empresas, percebemos que, se hoje lutamos para defender a terra que temos, em breve começaremos a lutar para ter terra. É importante perceber também que podemos assistir à privatização das terras em Moçambique de uma forma não declarada, por outros meios, seja por intermédio do Estado ou pelo Direito do Uso e Aproveitamento da Terra (Duat), que é próprio do moçambicano, mas que este pode passar a negociar com empresas também.