Investigação sobre MST após ditadura tem 380 documentos

Por Rubens Valente Da Folha de S.Paulo O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi espionado ao longo de toda a segunda metade da década de 80 no governo Sarney. Os arapongas observaram locais de encontros dos militantes, tiraram fotografias, infiltraram informantes e apreenderam documentos pessoais. A pedido da Folha, a coordenadoria regional do Arquivo em Brasília localizou, na base de dados do extinto SNI, 380 conjuntos de documentos sobre o MST entre 1984 e 1990 --tais conjuntos variam de uma a dezenas de páginas. Leia também


Por Rubens Valente
Da Folha de S.Paulo

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) foi espionado ao longo de toda a segunda metade da década de 80 no governo Sarney. Os arapongas observaram locais de encontros dos militantes, tiraram fotografias, infiltraram informantes e apreenderam documentos pessoais.

A pedido da Folha, a coordenadoria regional do Arquivo em Brasília localizou, na base de dados do extinto SNI, 380 conjuntos de documentos sobre o MST entre 1984 e 1990 –tais conjuntos variam de uma a dezenas de páginas.

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Uma seleção feita pela reportagem a partir dos resumos indicou 60 conjuntos de maior relevo histórico, o que resultou em 580 páginas impressas.

São relatórios produzidos pelo CIE (Centro de Informações do Exército), vinculado ao gabinete do então ministro do Exército, pelo Ministério das Relações Exteriores, pelo Centro de Inteligência da Polícia Federal, em Brasília, e pelas agências do SNI e seções reservadas da Polícia Militar do Paraná e da Brigada Militar do Rio Grande do Sul.

Geraldo Pereira, um militante do MST do Espírito Santo, foi severamente acompanhado. Um relatório indica que o sistema de vigilância interceptou três cartas endereçadas a ele, escritas por uma amiga, Vera. As cartas falavam sobre “adestramento de 19 novos militantes”.

Poucos meses antes disso, em agosto de 1989, o SNI descreveu viagem de Pereira ao exterior. “[Pereira] deverá visitar as cidades de Moscou e Iaroslav, na União Soviética, no período de 03 a 10 de Set 89, a convite do Sindicato dos Trabalhadores de Papel Vegetal e da Indústria Madeireira da URSS [extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas]”, diz o relatório.

O SNI também enfocou atividades de Dulcineia Pavan, então secretária da direção nacional do MST. Um relatório de julho de 1989 informou que ela “manteve contato” com Shu Jianping, “funcionário administrativo para Assuntos Culturais da Embaixada da China” em Brasília, para lhe pedir “as obras publicadas em português” do líder revolucionário Mao Tse Tung.

Localizada em São Paulo na semana passada, Dulcineia, hoje aposentada, disse que ficou “surpresa e sem comentários” sobre o relatório. Ela disse que nunca esteve com o funcionário da embaixada, o que levanta a possibilidade de o SNI ter interceptado uma carta ou um telefonema de Dulcineia _que também disse não se lembrar de interesse sobre as obras de Mao.

A maioria das análises dos arapongas, principalmente no período da disputa eleitoral pela Presidência da República em 1989, procurava retratar o MST como um grupo “revolucionário”, cuja intenção seria “implantar a guerra revolucionária” com o propósito de instalar um governo comunista no Brasil.

Para os analistas da inteligência do governo, o MST teria sido “infiltrado” pelo “clero progressistas” e por partidos políticos de esquerda, como PCB, PC do B e PT, “interessados em tirar proveito eleitoral”. Alguns relatórios foram escritos em cores dramáticas _lidos hoje, parece que uma guerra civil esteve prestes a estourar no Brasil.

Segundo os informes, o MST da Paraíba queria “transformar assentamentos em grupos revolucionários”, o da Bahia trabalhava com o “princípio da formação do ‘Exército Revolucionário’, cuja criação é preconizada por todas as organizações revolucionárias não trotskistas”, e o do Rio Grande do Sul promovia viagens para Cuba e Nicarágua para “treinamento de guerrilha”.

Lula

A ação dos espiões incluiu pesquisas sobre as atividades de organizações não governamentais estrangeiras que financiavam o MST na realização de seminários e projetos de agricultura familiar. Foi acionada a DSI (Divisão de Segurança e Informações) do Ministério das Relações Exteriores, outro braço do SNI, que produziu relatórios sobre as origens e os objetivos dessas ONGs, sediadas no Canadá, na Alemanha e na Holanda.

O MST foi fiscalizado desde o berço. A reunião considerada seu marco zero, realizada em janeiro de 1984 em Cascavel, foi acompanhada tanto pelo serviço reservado da PM paranaense quanto pelo braço do SNI na hidrelétrica Itaipu Binacional. Os papéis chegaram em poucos dias ao SNI.

No I Encontro Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, realizado em 1985 em Curitiba (PR), os arapongas desceram a detalhes _dos dizeres das faixas aos discursos dos convidados, um dos quais, Luiz Inácio Lula da Silva, então presidente do PT.

O relatório da inteligência da Polícia Federal registrou: “A presença de Luiz Inácio Lula da Silva foi muito ovacionada e (…) iniciou seu discurso dizendo ‘se nos prenderem, se nos matarem, voltaremos e seremos milhões’. Posicionou-se contra o Estatuto da Terra, uma vez que ‘somente a reforma agrária deve ser aceita como uma mudança, mas para isso, o Estado precisa usar a força, tirando a terra dos latifundiários e das multinacionais'”. Segundo o relatório, Lula teria pedido “que todas as terras das multi [nacionais] sejam expropriadas e que os estrangeiros sejam proibidos de adquirir terras no Brasil”.

Hoje Lula é criticado pelo MST pelos supostos tímidos resultados de seu programa de reforma agrária.

O SNI também mostrou interesse pela UDR (União Democrática Ruralista), formada por proprietários rurais para se contrapor ao MST. Entre 9 e 11 de julho de 1987, o CIE acompanhou uma manifestação da UDR em Brasília. Cerca de 25 mil produtores rurais teriam aparecido.

Diferentemente do MST, a UDR era pintada pelo SNI em cores positivas. “A preparação e a montagem do evento foram criteriosas. […] Toda a programação foi muito bem planejada, organizada e executada. A UDR, a fim de evitar a atuação de elementos provocadores, montou um esquema de segurança, conseguindo que os eventos programados transcorressem de forma pacata e ordeira.”

Masia adiante, os arapongas enaltecem os líderes ruralistas: “O que mais lucro trouxe à entidade foi a evidência da capacidade de seus líderes, com destaque para o presidente Ronaldo Caiado: a organização da UDR; a aglutinação dos produtores rurais à sua volta e seu alto grau de mobilização.”

A partir dos discursos dos líderes da UDR, o SNI concluiu: “Do acompanhamento dos fatos ‘in loco’ constata-se que lideranças políticas ligadas ao PT, radicais em essência, e lideranças religiosas lideradas pela DPT, auxiliadas por entidades ligadas ao MST, entre outras, têm insuflado e estão obtendo êxito rápido na politização dos trabalhadores rurais sem terra”.

Os documentos revelam que o MST desconfiou de infiltrações de arapongas no movimento e tomou providências para evitar vazamentos. Seis páginas datilografadas, de autoria atribuída a líderes sem-terra do Paraná, descrevem as possíveis fontes do serviço de inteligência: “políticos do PDS [partido apoiador do governo]”, destacamentos da Polícia Militar, “funcionários de rádios do interior”, “latifundiários”, que seriam os “informantes espontâneos”, funcionários de órgãos públicos ligados à questão da terra, entre outros.

“O principal segredo da eficiência de qualquer serviço de informação é ter informantes dentro do Movimento ou entidade”, diz o folheto.