Padre Izidoro Bigolin: a Romaria da Terra e os ”princípios do bem viver”



Do IHU Online
 

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Ocorre nesta terça-feira de carnaval, 12 de fevereiro de 2013, a 36ª Romaria da Terra, que este ano será organizada pela Diocese de Caxias do Sul na Comunidade Bom Pastor, em Bento Gonçalves. O tema deste ano é “Terra e Cidadania: Princípios do Bem Viver”. Participante desde a primeira edição da romaria, o Padre Izidoro Bigolin ressalta que a caminhada deste ano trará perspectivas atuais à celebração. “A Romaria deste ano traz presente em seu modo de ser realizada, questões bem concretas como o consumo consciente. Não é apenas para o homem da roça, é para todos a questão da cooperação, da solidariedade de ter projetos comuns”, esclarece.

Padre Izidoro é um militante da causa e participou da primeira edição da Romaria da Terra em 1977, em São Gabriel, quando ainda era acadêmico e fazia parte de um grupo de estudantes de Teologia na PUC-RS.

Ele destaca que alguns desafios de décadas atrás ainda permanecem que por isso a Romaria da Terra ainda é importante. “Primeiro porque os desafios da nossa realidade, não só do interior, da roça e da agricultura, permanecem, ainda que, às vezes, não com os mesmos nomes. Mas as situações permanecem pelo clamor da vida. Deus quer a libertação de seu povo e a dignidade plena. Se trata de situações bem concretas, bem reais, bem marcantes da vida do povo da roça, do interior e da cidade”, pondera.

Confira a entrevista:

IHU On-Line – Que reflexão o senhor faz sobre o tema da Romaria da Terra deste ano “Terra, vida e cidadania”, como princípios do bem-viver?

Izidoro Bigolin – O tema da Romaria da Terra este ano é bem atual, e nos coloca diante de realidades bem comprometedoras que exigem da parte de todos uma postura clara, decidida a favor da vida como um todo. Não se trata apenas de olhar de fora e por fora, mas de dentro e por dentro aquilo que nos envolve no dia-a-dia, ou seja, todos os desafios grandes que temos com a terra, como um todo que clama por uma ação consciente, rápida, em vista do bem comum. A terra como algo que está aí não para ser explorada, dominada ou até se tornando objeto de escravidão, mas a terra como uma possibilidade e um lugar de vida para todos.

A consequência disso tudo está na vida, que vem da terra, nasce da terra e pertence à terra, onde nós podemos nos realizar como pessoas humanas, solidárias, fraternas, empregando todas as dimensões da nossa vida, desde a vida do trabalho, do lazer, de fé, como consequência da luta para garantir a terra como um planeta, como casa de todos. Todos somos responsáveis para que aqueles valores próprios do ser humano de fato estejam presentes na realidade do campo, da roça, do interior, da cidade. E tudo isso vai gerando não o “viver bem”.

Há muita gente que vive bem, mas não tem o bem-viver, onde se criam as relações próprias do ser humano que se sente bem como pessoa, como ser humano, mas que também se sente bem e gosta de viver (e bem-viver) com os demais, com a natureza e com o mundo. A reflexão é muito ampla, aberta e provocativa. Não se esgota em uma caminhada, um momento, uma situação, um fato, um acontecimento, mas se prolonga como compromisso político de todos para alcançar verdadeiramente um bem-viver.

IHU On-Line – Como transformar o viver bem em bem-viver, em nossa sociedade marcada pelo consumo e pelo individualismo? 

Izidoro Bigolin – Alguns caminhos podem perfeitamente se realizar. Por exemplo, é preciso transformar o “viver bem”, a vida sem compromisso, desligada dos demais, apenas pensando em si mesmo. Estamos muito acostumados a ver em nossa realidade a lógica do “importante é que eu viva bem, os demais são os demais”. Alguns caminhos são os de valorizar o outro, ter presente que o outro é uma pessoa, é um ser humano, que tem conhecimento, experiência, história, então valorizar o outro como pessoa, mas também por meio das instituições, grupos, de comunidades, aprender com os outros, porque eles também sabem e têm conhecimento. 

Em segundo lugar, além de valorizar o que o outro tem, é preciso respeitá-lo na sua individualidade e na sua experiência. Por outro lado, é preciso abrir o conceito de bem-viver à questão das relações de fraternidade, solidariedade, compromisso, compaixão. O bem-viver clama por uma compaixão. Quem tem compaixão pelo outro, pela terra, pelo mundo, não só sente a dor, mas faz da dor e do desafio do outro um compromisso para si.

Acredito muito nesta forma que aprendemos do nosso mestre Jesus, quando ele disse “tenham compaixão deste povo”, porque era um povo que não tinha o bem-viver, não vivia dignamente. E Jesus ensinou que onde há compaixão, há solidariedade. E onde há solidariedade, há compromisso e partilha, então certamente haverá o bem-viver. Então, temos que passar de um mundo que pensa infelizmente baseado no egoísmo, no acúmulo, no poder enquanto dominação, para um mundo de compaixão e solidariedade.

IHU On-Line – Como entender que a Romaria da Terra continue sendo realizada desde 1978? O que caracteriza e marca este evento no sentido da tradição da sua realização?

Izidoro Bigolin – Participei da primeira romaria da terra em São Gabriel. Lembro perfeitamente que éramos um grupo pequeno de estudantes de Teologia na PUC, onde tínhamos e lutávamos por grandes ideais de vida. Para nós da região de Bento Gonçalves, a pergunta que muitos nos fazem é “como a Romaria da Terra permanece 36 anos depois de ser realizada primeira?”. Primeiro porque os desafios da nossa realidade, não só do interior, da roça e da agricultura, permanecem, ainda que, às vezes, não com os mesmos nomes. Mas as situações permanecem pelo clamor da vida. Não se trata apenas de um encontro, pois por trás a romaria está radicada na fé, radicada na fé Deus que é vida que em Jesus veio para que todos tenham vida.

Deus quer a libertação de seu povo e a dignidade plena. Se trata de situações bem concretas, bem reais, bem marcantes da vida do povo da roça, do interior e da cidade. Algumas bandeiras continuam como a reforma agrária, a pequena propriedade, o grande proprietário. São desafios que precisam ser enfrentados e resolvidos nas situações que hoje são tão importantes para quem está no interior, vivendo na roça, que agora são poucos é verdade, e para quem mora na cidade.

A Romaria deste ano traz presente em seu modo de ser realizada, questões bem concretas como o consumo consciente. Não é apenas para o homem da roça, é para todos a questão da cooperação, da solidariedade de ter projetos comuns. A fé e a realidade fazem com que a Romaria da Terra continue forte, presente em todas as realidades da vida que marcam o ser da pessoa humana na cidade e na roça.

IHU On-Line – Qual o perfil dos participantes da Romaria da Terra?

Izidoro Bigolin – Pelo que sabemos, a maioria dos participantes são grupos e equipes que estão diretamente envolvidos com a questão do trabalho na terra. São pequenos agricultores, entidades, associações e movimentos de pessoas que se identificam com a terra, em primeiro lugar.

Em segundo lugar, são pessoas e grupos nas cidades, como sindicatos e cooperativas, estamos na nossa região celebrando a memória dos 80 anos da maioria das cooperativas que surgiram na nossa região e 50 anos dos sindicatos rurais que surgiram da participação muito grande da Igreja, no sentido de tomar a iniciativa de despertar o sindicalismo e o cooperativismo. São essas pessoas que participam. Estamos tendo um apoio grande das pessoas da cidade que vão participar da Romaria da Terra. 

IHU On-Line – Qual a relação entre a história de colonização da região Nordeste do RS com a história da Romaria da Terra? 

Izidoro Bigolin – Primeiro é uma benção da Romaria pela segunda vez na Diocese de Caxias. A primeira vez foi em 1997, em Antonio Prado. Com certeza é uma benção para Bento Gonçalves e nossa região pastoral. Porque Bento Gonçalves e a nossa região está crescendo, se desenvolvendo na indústria, no turismo, nas grandes feiras que acontecem aqui no parque de eventos cidade, onde acontecem feiras internacionais e nacionais. Agora estamos abençoados com a Romaria da Terra.

A região que acolheu a primeira grande romaria dos migrantes europeus, italianos, poloneses, suecos e alemães que vieram até aqui e se estabeleceram nessa região. Será a romaria da caminhada, da migração dos nossos antepassados com as grandes romarias de hoje, as grandes caminhadas do povo que vai em busca da vida plena e do bem viver, que vão crescendo e se desenvolvendo a partir do pequeno agricultor, da agricultura familiar, e este é um exemplo que a reforma agrária ou a pequena propriedade é o caminho do desenvolvimento, do crescimento para todos.

A pequena propriedade não impede o desenvolvimento econômico, pelo contrário, ela favorece profundamente. Então o paralelo são as migrações, as caminhadas. Hoje enfrentamos o problema do êxodo, que é um problema da sucessão familiar, pois é difícil os jovens permanecerem na sua propriedade rural e este é o grande paralelo que existe. Se antes vieram os imigrantes, hoje vivemos uma realidade nova com o êxodo, não só aqui como no Brasil todo e me refiro ao caso dos haitianos, senegaleses, pessoas de outras partes do mundo que vem em busca de vida em nosso país e também na nossa região. Queremos fazer nossa reflexão, nossa caminhada, nossa celebração de 12 de fevereiro. Caminhadas e romarias de hoje para que a terra construa nossa vida e nossa cidadania. 

IHU On-Line – Como o senhor avalia a Igreja no Rio Grande do Sul hoje, em relação às posturas conservadoras que vem sendo assumidas pelo Vaticano, como uma forma de enfrentar os desafios da modernidade?

Izidoro Bigolin – Percebendo essa caminhada de 36 anos, nós percebemos na Igreja do Rio Grande do Sul expressões muito fortes de uma Igreja profética, libertadora, com testemunhos pessoais voltados para a vida do povo como um todo. Não só cuidando da espiritualidade, da fé dentro do ser humano, que é muito importante, mas que a fé transforme a realidade. Eu creio que a Igreja do Rio Grande do Sul e nossas dioceses percebem esses desafios com clareza. Problema é concretizar mais essa dimensão profética, a questão das lutas do povo e arregaçarmos as mangas com outras pessoas que também pensam em uma proposta de solidariedade de vida para todos.

A igreja tem consciência disso e sabemos que o que nos falta é concretizar aqueles projetos voltados para a vida do povo. Tem muita coisa acontecendo. As dioceses sempre têm no seu planejamento ações concretas, mas que deveríamos unir tudo isso e transformar em um grande projeto para o bem comum para todos. A Igreja do Rio Grande do Sul caminha bem, mas deveria andar um pouquinho mais rápido. 

IHU On-Line – O senhor gostaria de acrescentar algo que não lhe foi perguntado?

Izidoro Bigolin – A própria celebração do dia 12 e a caminhada que faremos da Romaria da Terra que faremos no barracão, um lugar não só simbólico, mas onde se concentraram os imigrantes que chegavam e ali eles eram distribuídos. Então faremos uma reflexão, uma oração, a partir da vinda do povo de Deus na Bíblia de cada momento.

Tendo presente a Terra, a Vida e a Cidadania. Serão em torno de dois quilômetros de caminhada onde iremos rezando, refletindo. É uma Romaria diferente da de Caravaggio, de Medianeira, da Pesca de Santo Antônio. É uma romaria de pessoas que se identificam com uma causa comum, a partir da fé e dos apelos da realidade e que Deus nos convida a estar presente e celebrar.