Paulo Kliass: agronegócio não resolveu a fome e só traz prejuízo à população


Por Paulo Kliass
Da Carta Maior

   
Algumas notícias divulgadas pela imprensa nos últimos tempos têm apresentado sua contribuição para um debate fundamental. Já passou da hora de encararmos com coragem a questão da qualidade de tudo aquilo que comemos e de sua relação estreita com outros aspectos de nossa vida, seja no plano individual, seja na organização em sociedade. Afinal, a frase “somos o que comemos” é atribuída a Hipócrates, há mais de 2 mil anos atrás.


Por Paulo Kliass
Da Carta Maior

   
Algumas notícias divulgadas pela imprensa nos últimos tempos têm apresentado sua contribuição para um debate fundamental. Já passou da hora de encararmos com coragem a questão da qualidade de tudo aquilo que comemos e de sua relação estreita com outros aspectos de nossa vida, seja no plano individual, seja na organização em sociedade. Afinal, a frase “somos o que comemos” é atribuída a Hipócrates, há mais de 2 mil anos atrás.

A pesquisa periódica realizada pelo Ministério da Saúde (Vigitel) revela que 51% da população apresentam sobrepeso e que 17% já atingiram o limite da obesidade. Um dos principais fatores para esse quadro de agravamento da saúde é a alimentação, segundo os especialistas. Na pesquisa de 2006 os índices eram, respectivamente, 46% e 11%. Esses dados só fazem confirmar as hipóteses de que nem sempre a melhoria no quadro de distribuição de renda tem como contrapartida um avanço efetivo em termos de qualidade de vida.

Um conhecido profissional e divulgador da gastronomia conseguiu comprovar aquilo que boa parte dos meios mais esclarecidos já sabia há muito tempo. O processo de fabricação dos alimentos de um importante conglomerado mundial de lanches rápidos é uma falácia, que provoca prejuízos à saúde de quem para ali se dirige com objetivo de realizar suas refeições. A utilização de produtos impróprios ao consumo humano é prática corrente no setor de alimentos e envolve também o consumo de ingredientes nos estabelecimentos de varejo, para elaboração das refeições em ambiente doméstico.

Alimentação e riscos para a saúde

Os riscos a que os indivíduos estão submetidos vão desde a ingestão de ingredientes tóxicos derivados do processo de industrialização de comidas e bebidas até a exposição de seu organismo a substâncias venenosas presentes nos alimentos adquiridos no comércio. No primeiro caso, trata-se de processos de transformação das matérias-primas envolvendo produtos considerados estranhos ao ciclo alimentar e que atuam como maximizadores da suposta “eficiência” produtiva industrial. No segundo caso, são considerados os produtos que incorporam derivados de agrotóxicos, fertilizantes, vacinas, hormônios artificiais, produtos transgênicos e tantas outras transformações associadas ao modo não-orgânico e artificial de operar as atividades agrícola, avícola e pecuária.

Todo esse processo de transformação da forma pela qual o ser humano se alimenta não é novidade. Na verdade, obedece a um processo histórico de desenvolvimento das formas de viver e produzir em sociedade, desde quando deixamos de ser simples coletores e caçadores no ambiente natural. Ocorre, porém, que alguns limites começam a ser ultrapassados nessa busca insana do avanço tecnológico e da chamada “dominação do homem sobre a natureza”. Assim como o aprofundamento da produção industrial compromete cada vez mais o meio-ambiente por conta dos diferentes mecanismos de poluição, as soluções para a alimentação também começam a apresentar a sua fatura.

Uma consequência trágica e evidente refere-se à saúde pública. A alimentação derivada do processo industrial descontrolada obedece ao interesse do lucro e não às necessidades da maioria da população. Basta lembrarmos os efeitos provocados pelas campanhas da década de 1960, quando as multinacionais dos alimentos começaram a divulgar os “benefícios” do leite em pó para bebês. Apesar de ter seu espaço de aceitação reduzido atualmente, o fato é que várias gerações foram prejudicadas por evitarem a amamentação com leite materno e adotarem o leite em pó. Para tanto, criou-se o conhecido “consenso dos especialistas” em torno das especificidades das questões técnicas. Leite em pó era considerado melhor em termos nutricionais, e ponto final.

Indústria alimentícia e transgênicos

A saúde das pessoas também está sendo seriamente comprometida em razão da ingestão crescente e descontrolada desse universo de produtos industrializados que desrespeitam o equilíbrio natural e metabólico. Cada vez mais se lança mão de produtos contendo em suas fórmulas todo o tipo de substâncias artificiais, sempre atuando como corantes, acidulantes, flavorizantes, antioxidantes, emulsificantes, umectantes, aromatizantes, estabilizantes etc. e tal.

O princípio jurídico da precaução deveria ser uma condição sine quae non para enfrentar a generalização do uso de alimentos envolvendo experiências com sementes geneticamente modificadas. Isso significa que a aceitação dos possíveis benefícios proporcionados pelo desenvolvimento científico e tecnológico deveria ser precedida pela confirmação experimental a respeito da ausência de danos para a saúde dos indivíduos. Porém, o poderoso “lobby” da indústria de vários setores (agronegócio, alimentação, química, entre outras) tem conseguido vitórias importantes para fazer valer seus interesses. Os malefícios para a saúde pública só são sentidos nas gerações seguintes, como é o caso das evidências de elevadas taxas de incidência de patologia cancerígena de diversos tipos.

O argumento econômico também é incorporado ao debate. Haveria ganhos de escala no uso intensivo do transgênico, além da aplicação intensiva de fertilizantes e herbicidas – o exemplo mais gritante foi a chamada “revolução verde”, que deixou um rastro terrível de danos para o ambiente e para as pessoas. Hoje em dia, o uso indiscriminado de transgênicos também surge camuflado com a suposta racionalidade de um inexistente ganho de eficiência. Tudo aquilo que eventualmente se consegue com a redução dos custos unitários da produção em larga escala é perdido na sequência das inúmeras etapas intermediárias, até a chegada à mesa para ingestão. A comercialização em regime de oligopólio permite a manipulação de preços e a manutenção de altas taxas de retorno. A dependência face às complexas estruturas de financiamento incorpora custos de natureza financeira a um tipo de produto que todos poderiam ter em seus próprios quintais ou em hortas comunitárias da vizinhança.

A alternativa da agricultura sustentável

Ora, está mais do que comprovado que a adoção do modelo do agronegócio, com o uso de todos os recursos proporcionados pelo desenvolvimento tecnológico comprometedor da saúde e do meio ambiente, não resolveu os problemas da fome no mundo. Com exceção dos ganhos econômicos obtidos pelas empresas intervenientes no complexo, o modelo só traz prejuízos à humanidade. Essa é uma das razões pelas quais começam a ganhar expressão sistemas alternativos de produção de alimentos, com incorporação de novos valores e pressupostos. Ao invés de propriedades de grande extensão, voltam à cena propostas vinculadas ao pequeno produtor e à agricultura familiar. Os alimentos ganham em qualidade e o conjunto da sociedade é beneficiado por ser um modelo gerador de emprego, mantenedor de práticas agrícolas tradicionais, capaz de assegurar e multiplicar a renda no nível local. É o exemplo positivo da sustentabilidade em sua abordagem mais integral: econômica, social, cultural e ambiental.

Mas para que essa maneira de organizar a produção de alimentos se consolide, é necessário que haja medidas de estímulo nesse sentido. A educação e a conscientização são aspectos essenciais para se garantir uma abordagem distinta e uma nova cultura das gerações a seguir face à alimentação. Por outro lado, cabe ao Estado oferecer o exemplo concreto de que é possível outra forma de lidar com a questão da alimentação. Para tanto, o setor público (nos níveis federal, estadual e municipal) deveria criar as condições para o consumo da produção alimentícia nessas novas bases. Em economês, poderíamos dizer que a ação governamental gera uma demanda, com o objetivo de assegurar a continuidade da oferta no médio e longo prazos.

Algumas prefeituras já tomaram esse tipo de iniciativa. Basta determinar que toda a aquisição de alimentos e toda a operação da rede de restaurantes e lanchonetes no âmbito da administração pública devam ter como fornecedores produtores vinculados a programas de cooperativas e agricultura familiar, com exigência de padrões de agricultura orgânica e ecológica. Com isso estariam abrangidas áreas como a própria estrutura governamental (restaurantes para funcionários), a rede escolar de todos os níveis (desde as creches até as universidades), a rede hospitalar e de saúde, os restaurantes populares e comunitários, entre tantos outros setores.

Como sempre, as alternativas técnicas existem e estão à disposição. O que falta é a vontade política de colocar em marcha um modelo distinto, que ofereça à população uma alternativa mais econômica, saudável e sustentável de assegurar nossa própria alimentação. Para alcançar tal objetivo, o Estado deve lançar mão de políticas públicas integradoras que permitam ganhos da qualidade em termos de produção de alimentos, geração de emprego, melhoria nos padrões de saúde e menor comprometimento do meio ambiente.

* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.