No Assentamento Palmares 2, o educando de ontem é o professor de hoje

Uma década depois, nas escolas do Assentamento Palmares 2, em Paraupebas (PA), as primeiras crianças são as atuais professoras.
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A diretora da escola Crescendo na Prática, Clívia Regina, com seus educandos. Foto: Raimundo Pacó.

Por Ismael Machado
Da Página do MST

É um percurso longo o que Larissa, de quatro anos, percorre todos os dias do assentamento Liberdade ao assentamento Palmares 2 para assistir aulas. Embora os ônibus escolares sejam novos, é um caminho acidentado, que atravessa o município de Parauapebas, no sudeste do Pará.

Larissa nasceu com um problema congênito que dificulta a fala, por isso tem acompanhamento de uma fonoaudióloga. Na escola Salete Moreno não se fala em inclusão, porque inclusão faz parte de uma vivência cotidiana, não apenas pedagógica.

São duas escolas criadas pelo MST no assentamento Palmares 2. A primeira tem um nome sugestivo: Crescendo na Prática. “Ela surgiu como todas as outras escolas do MST, colada ao processo de ocupação da terra”, explica a diretora Clívia Regina, 39 anos. 

 

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A pioneira Francisca Maria. Foto: Raimundo Pacó.

A ocupação em questão ocorreu em 26 de junho de 1994, numa área então conhecida como Cinturão Verde, uma concessão da empresa de mineração Vale. Mais de 2 mil famílias se instalaram no que seria o futuro Palmares.

As famílias foram despejadas, mas não desistiram. Fincaram os pés em frente à Câmara Municipal e depois ocuparam a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em Marabá. 

Foi em frente à sede do órgão federal que surgiu a escola. Era agosto de 1994. “Tinha muitas crianças de pais acampados. Então começamos a ver quem tinha habilidade no ensino e a organizar as aulas”, lembra Clívia.

O começo foi difícil: As aulas eram ministradas embaixo de árvores. Não demorou e os próprios integrantes do acampamento começaram a articular melhor o espaço. “Quem tinha mais escolaridade assumia as aulas”, diz a diretora.

A professora pioneira foi Francisca Maria Ferreira, de 49 anos. “Cortei as primeiras palhas para fazer a escola. Foi um período de muita dificuldade, mas de boas lembranças também”, diz ela.

Com o processo de luta pela terra em Parauapebas, a escola passou a ter apoio municipal depois de uma tragédia: o Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.

“Através de muitas negociações, mobilizações e lutas que a escola se ergueu. Os professores começaram a ser remunerados. A comoção que houve depois do massacre acabou gerando conquistas maiores para o Movimento”, lembra Clívia.  Foi quando houve maior liberação da terra, recursos, créditos e postos de saúde para os Sem Terra.

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Nova fase

Em 1998 veio o primeiro concurso público municipal para educadores locais. Cinco que obtiveram a aprovação pertenciam ao Movimento. Os demais vinham de Parauapebas, trazendo ideias pré-concebidas sobre o MST. 

Foi um processo complicado de inserção. Nesse período, a Universidade Federal do Pará (UFPA) entrou com os cursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), e parte dos educadores fizeram o curso.

O aperfeiçoamento é uma busca contínua. Graduação e pós-graduação nem de longe passaram a ser ideias inalcançáveis. A escola, atualmente, possui três pessoas na coordenação. Messias Silva Marques e Robilene da Silva Souza, por exemplo, são ex-alunos da escola.

O Assentamento Palmares 2 cresceu além do que se esperava. Transformou-se num bairro de Parauapebas. A comunidade possui em torno de 10 mil habitantes. São 1364 alunos e, no total, 53 educadores.

 

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Foto: Raimundo Pacó.

Como não poderia deixar de ser, o assentamento passou a sofrer também a influência do município sede. O custo de vida é alto em Parauapebas e isso se reflete na comunidade. Mas os procedimentos da escola também alargam as visões. 

Muitos professores não vivenciaram o processo de ocupação e conquista da terra. A pedagogia implantada muitas vezes entrava em choque, mas o que a escola Crescendo na Prática traz, além de tudo, é um jeito diferente de abordar os temas em sala de aula.

“Trabalhamos com uma temática que tenha a ver com nossa história”, diz Clívia Regina. Esse ano, por exemplo, o tema gerador é justamente os 20 anos da ocupação Palmares. “Estamos rompendo com a ideia de datas comemorativas. A visão é de outra forma, mais ampla”, garante.

A escola possui um amplo espaço, mas que vem se tornando cada vez mais ‘apertado’ devido à demanda. Nas paredes, há lembranças de personagens simbólicos para a esquerda brasileira, como Paulo Freire, Oscar Niemeyer e Che Guevara. 

Em toda parte também há referências ao Movimento, à luta pela posse da terra. Na sala da diretoria, uma pintura lembra o Massacre de Carajás.

Na biblioteca, alguns troféus esportivos mostram que o esporte também é importante. A escola já conseguiu premiações em xadrez e futsal feminino.

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“Se calarmos as pedras gritarão”

“Se calarmos as pedras gritarão”, estampa uma frase na parede do refeitório. Nas salas, crianças e adolescentes uniformizados e atentos às aulas. No laboratório de informática, 23 computadores com crianças curiosas em frente a eles. 

“Trabalho aqui de acordo com o que as professoras ministram em sala”, diz a professora Maria Lidiane. Ainda há dificuldade em relação à conexão com internet, mas é um projeto futuro, de acordo com a diretora.

Ministrar aula em uma escola com as características de estar inserida no contexto de luta social faz parte do idealismo de alguns profissionais. Como a maranhense Débora Correia, 32 anos. 

“A educação no campo considera a realidade do sujeito”, diz ela. O exemplo que dá é bem sugestivo. “Penso que nenhuma outra escola vai trabalhar com a ideia do Massacre de Eldorado dos Carajás”.

 

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Segundo a professora, o MST é um espaço pedagógico muito rico, que contextualiza a história na visão dos trabalhadores do campo. “A gente pensa em criar cidadãos conscientes. É isso que queremos”, afirma.

É o que move também a professora Isabel Soares Carvalho, 29 anos, ex-aluna da escola. “Cheguei aos 12 anos de idade. Estudei o ensino fundamental completo até a oitava série quando ainda era uma escola de palha”. 

Isabel concluiu o magistério pelo Pronera em 2004. Foi para outro assentamento, lutar pela terra e dar aulas. Em 2008, passou no vestibular para Arte-Educação, em Teresina, no Piauí. Concluiu em 2013 e voltou a Palmares. “A ideia é usar a artes como forma de contar a realidade que vivemos”, diz.

 

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Permanente construção

Algumas boas centenas de metros mais adiante fica a escola Sallete Moreno. É voltada para a educação infantil, e impressiona logo à primeira vista. Tem espaços amplos, adequados, mas em permanente construção e adaptação. Para quem faz parte da geração pioneira das duas instituições de ensino, as escolas dão orgulho e compromisso.

É uma escola contemporânea. Possui auditório, biblioteca, brinquedoteca, laboratório de informática com 20 computadores, videoteca, sala de leitura e, principalmente, profissionais dispostos a fazer diferente.

“O nosso desafio é muito grande”, diz a diretora Deusamar Sales Matos, 48 anos. “Temos muito o que fazer. Eu olho para a frente e vejo que temos de conquistar mais e mais”. Muitas coisas mudaram para melhor, em relação ao acesso de nossas crianças às escolas e à formação dos professores. Na Sallete Moreno, são 224 alunos e nove professoras.

Um dos grandes desafios, segundo a diretora, é construir um projeto pedagógico que seja de educação do campo, mesmo com as contradições existentes em Parauapebas. “Aqui é uma região onde se disputa tudo: de terra à ideologia”, conta Deusamar.

Essas contradições interferem, pois a escola não é de ‘educação urbana’. “As crianças são camponesas, por isso ficamos disputando ideias e concepções”. Outro desafio é o acesso e permanência das crianças na escola. 

 

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Existem outros assentamentos que ficam há  42 km de distância. Seis assentamentos têm alunos que freqüentam a Sallete Moreno: Palmares, Lagoa Preta, Rio Branco, Novo Brasil, Liberdade e Barra do Cedro.

Inaugurada em 2013, a escola Sallete Moreno tem, no entanto, as raízes fincadas em 1994, quando o assentamento Palmares começou a ganhar forma. Já vai longe aquela manhã de quase 37 graus centígrados, quando Francisca Maria viu a sua frente vários pares de olhos infantis à espera da primeira aula. Ela guarda isso na memória:

“Consigo ver, olhando pra trás, como iniciamos, debaixo de uma árvore, num processo de construção, passinho a passinho, pela força dos trabalhadores, trabalhadoras. Foi muita luta para chegar a essa estrutura. 

Aquelas crianças que iniciaram, hoje são nossas colegas de trabalho. Já tem um grupo significativo de alunos que foram assumindo essa missão. É gratificante ver isso e saber que a luta continuará a ser conduzida quando não tivermos mais forças para estar aqui”.