“Não era para ter guerra de sangue. Era guerra pela terra”, afirma acampado

Desde o último sábado, o jornalista e maratonista Rodolfo Lucena está percorrendo a Estrada da Reforma Agrária, em Pernambuco.

Desde o último sábado, o jornalista e maratonista Rodolfo Lucena está percorrendo a Estrada da Reforma Agrária, em Pernambuco.

Até o dia 9 de setembro, Lucena fará corridas em diversos assentamentos do país, com a participação de militantes e da juventude assentada, com o objetivo de divulgar os benefícios da atividade física e estimular a prática esportiva, e divulgar um MST que os meios de comunicação não mostram.

Confira esta e outras histórias contada pelo jornalista ao longo de sua jornada.

Por Rodolfo Lucena
Do Blog Maratonando com o MST

A notícia era de que ia ter jagunço e pistoleiro, que a polícia ia chegar e pegar todo mundo, que o patrão não ia deixar ninguém entrar.

Que nada!

“Não era para ter guerra de sangue. Era guerra pela terra”, lembra Carlos José da Silva Santos, um dos lutadores das cerca de 200 famílias que, às 5h do dia 16 de dezembro de 2013 cortaram a cerca do latifúndio conhecido como fazenda Milano, às margens da estrada da Reforma Agrária, no município pernambucano de Santa Maria da Boa Vista.

“Entramos com a força de Jesus”, diz ele, que até dois anos atrás trabalhava na roça como avulso, plantando e colhendo em terra alheia. Agora sua família é uma das aproximadamente 600 famílias do acampamento Filhos da Luta que aguardam a emissão de posse para tornarem ainda mais produtivas as terras antes secas, crestadas pelo sol e abandonadas, esquecidas pelos proprietários.

Carlos foi um dos acampados que, na manhã de hoje, participaram comigo de uma corridinha em volta do território que ocupam.

02 A corrida 1

Saí cedinho, mas já com o sol no lombo, deixando a fartura do assentamento Safra e partindo para o asfalto da estrada da Reforma Agrária  –se você quiser deixar furioso algum trabalhador da região, é só chamar a rodovia de Estrada da Uva e do Vinho, que também circulou como possível identificação do trecho.

“Olha só esses caminhões que passam carregados”, diz uma trabalhadora. “É assim o dia inteira. Eles carregam o que nós produzimos, a produção da reforma agrária. E antes, isso aqui era pura terra, nós é que lutamos e conseguimos o asfalto.”

É mais um símbolo do trabalho organizado pelo MST e hoje conduzido por quem ara a terra, molha as plantações, colhe a safra e batalha para conseguir um preço melhor para sua produção.

Corri mais de cinco quilômetros na direção do município de Lagoa Grande para encontrar o maior dos três acampamentos na rodovia. Com a bandeira do MST na cerca, a identidade Filhos da Luta serve para repisar o fato de que a maioria das famílias ali em campanha pela conquista da terra para trabalhar é de filhos de ex-acampados, hoje assentados na região.

São os frutos do movimento. As famílias de acampados cresceram. Muitos tiveram condições de mandar seus filhos para o ensino médio e faculdade –há professores, médicos, enfermeiros e advogados filhos de agricultores dos assentamentos. Outros precisam garantir comida para mais bocas, o que torna necessário expandir.

Assim nasceram acampamentos como o Hugo Chavez e o Filhos da Luta.

02 A bandeira

Quando cheguei lá, a maioria do povo estava na roça. Foi difícil achar companhia para uma corrida, ainda que curta, que marcasse a presença lá do projeto Maratonando com o MST. Pois saí sozinho mesmo, depois de pedir informações sobre eventuais cachorros que pudessem atacar este corredor.

E lá me fui. As ruas estavam bastante limpas, e os barracos são construídos com madeira do mato mesmo, barro e palhas de coqueiro. Nada de ostentação, a não ser um belíssimo pé de uma flor roxa (ou seria cor de vinho?), de pétalas aveludadas, que domina a vista em uma das passagens do acampamento.

02 A flor

Trata-se de um pé de bredo de estudante  –pelo menos, foi isso o que eu entendi–, plantado e cuidado com carinho por dona Maria Duarte Pereira, 51. Apesar de trabalhar duro no roçado, ela tira tempo para suas flores –também cuida de um vigoroso pé de margaridas. São imagens que alegram um ambiente marcado pela simplicidade e pela vida bruta, que às vezes pode até endurecer os sentimentos.

Enquanto fazia o contorno da área –um perímetro de cerca de 750 metros, de acordo com meu GPS–, o povo se juntava na parte da frente do acampamento, curioso com a presença desta figura estranha.

Carlos agora até vestia tênis, e dona Maria Rosângela dos Santos também se aproximou. Ela é conhecida como a corredora do acampamento.

Trouxe para o Filhos da Luta um hábito que já tinha quando trabalhava em Petrolina como caixa de supermercado. “Corro para rejuvenescer”, explica ela, que tem 39 anos e dois filhos estudantes universitários –o rapaz faz veterinária, a moça estuda administração.

02 A corredora na roca

Com o marido, planta coentro, alface, tomate em uma pequena área irrigada na parte de trás do acampamento. Vende a produção em Petrolina, carregando tudo num carrinho o que a família conseguiu plantar.

“Aqui, cada família tem a sua roça”, orgulha-se em dizer Joselane dos Santos, 32 anos, de corpo magro e rosto enérgico, de quem não tem medo de lutar pela vida. Ela integra a equipe de coordenadores do acampamento –são quatro mulheres e dois homens.

02 A lider

Carregando no colo o filho de três meses –caçula de uma fieira de sete crianças–, ela explica as responsabilidades dos coordenadores: “Damos orientação sobre como usar a água, fazer economia, cuidar do lixo”. Enfim, questões bem práticas do dia a dia do acampamento.

Também cuidam para que todo o povo fique organizado e são responsáveis para acompanhar o encaminhamento das reivindicações do grupo, que aguarda a emissão de posse da terra –que nunca foi tão produtiva, segundo dizem os acampados.

A gleba definida para reforça agrária engloba áreas de três fazendas, num total de 2.123 hectares. Hoje, os acampados vivem em oito hectares –seis deles destinados ao roçado.

02 A Bananal

Roçado muito produtivo, por sinal, de acordo om observação de Samuel Ferreira Barbalho, presidente da associação dos produtores rurais do assentamento Safra. Visitando o bananal de Filhos da Luta, notou cachos que, pelos cálculos dele, teriam em torno de 120 bananas.

“Lá no Safra temos 80 hectares plantados de banana e não chega a ter essa qualidade”, disse, referindo-se ao tamanho do cacho.

“Deve ser a terra”, especula.

Talvez. Pode ser a água, pois os acampados desde o início conseguiram irrigar parte do terreno com águas vindas do São Francisco. Ou o trabalho cuidadoso, sabe-se lá.

O certo é que, para o pessoal do acampamento Filhos da Luta não tem tempo ruim. A explicação talvez seja a esperança, como diz a jovem mãe e líder trabalhadora Joselane, falando de sua própria experiência: “Eu trabalhava para os outros, morava de favor. Agora tenho minha terra, planto banana, maracujá, feijão, batata. Minha vida mudou”.