“A criminalização dos movimentos populares resulta no fascismo”, diz advogado Roberto Tardelli

Conhecer de perto a forma de organização e os motivos da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram alguns dos objetivos da vinda do advogado paulista Roberto Tardelli ao Rio Grande do Sul neste mês de junho.
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Assentados e assentadas apresentaram ao advogado o Instituto Educar

 

Por Catiana de Medeiros
Da Página do MST

Na região Norte do estado, acompanhado de assentados e assentadas, ele percorreu o local onde foi montado o Acampamento Encruzilhada Natalino e os assentamentos conquistados após a ocupação da antiga fazenda Annoni, numa luta protagonizada por 7.500 Sem Terra em 29 de outubro de 1985 no município de Pontão. Tardelli também acompanhou a organização das famílias que ajudaram a construir a escola agrícola Instituto Educar e mantêm duas cooperativas na produção de leite, carnes e embutidos. Hoje, elas são exemplos em práticas socialistas.

“A ocupação da fazenda Annoni é um símbolo da luta pela terra no Brasil por ter se tornado um assentamento bem-sucedido, que manteve as famílias organizadas por reforma agrária popular, com direito à saúde, educação e moradia. Por causa da nossa luta, hoje os nossos filhos têm outro padrão de vida. Sozinhos todos nós temos limites, mas a cooperação que praticamos aqui é uma forma dos pobres obterem conquistas”, explicou ao advogado o agricultor Darci Maschio.

Tardelli atuou 31 anos como promotor de justiça no Ministério Público de São Paulo, sendo o responsável pela acusação no caso de Suzane von Richthofen. Com a aposentadoria, hoje ele trabalha como advogado criminalista. Para a Annoni ele levou, além da vontade de aprender sobre a luta dos Sem Terra, o debate político. Tardelli afirmou que, “com o golpe, o país vive um dos piores períodos de sua história” e que os movimentos populares enfrentarão “períodos muito duros”.

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No RS, Tardelli conheceu lugares que marcaram a história de lutas do MST

“Antes a ditadura partia do executivo e as pessoas tinham o judiciário como um aliado, embora fosse frágil. Hoje, a ditadura parte do poder judiciário, o golpe foi praticado dentro dos tribunais. Eles conseguiram fazer um golpe sem os militares e com o apoio da grande mídia. Isso representa a retomada do poder por quem o perdeu por algum tempo pelas forças populares. Eles estão tirando os atrasos, os desmontes de políticas públicas, que pensamos que fariam em meses, eles estão fazendo em semanas”, disse.

Tardelli afirmou ainda que não imaginava que a sociedade brasileira fosse temer tanto a agricultura familiar e camponesa, e se posicionasse contra os programas sociais, como o Bolsa Família e a Lei de Cotas, criado nas gestões de esquerda. “Por que as pessoas não podem ter dignidade econômica?”, questionou, emendando que “o país se transformou nesses últimos anos em machista, fascista e sexista”.

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O ex-promtor de justiça motivou os alunos do Instituto Educar a continuar o projeto de reforma agrária popular do MST 

“A Annoni prova que dá para fazer diferente. O MST cumpriu a constituição, deu à terra a sua função social e colabora para tornar a sociedade mais fraterna, justa e solidária. Vocês muitos anos, economicamente e politicamente, à frente do que a gente vê na sociedade brasileira. A criação desse projeto de vida altamente revolucionário mostra que cada um pode realizar o seu sonho coletivamente. A única necessidade é quebrar essa cerca que criminaliza o Movimento. Isso se dará através da informação”, completou.

O advogado popular Leandro Sclabrin acompanhou a agenda de Tardelli e falou da participação do MST na construção do município de Pontão, que hoje tem cerca de 4 mil habitantes, a maioria morando e produzindo na zona rural.

“Toda a história de Pontão está ligada à luta pela terra. Foi ela quem permitiu a fundação do município. Hoje, devido à participação do MST, conseguimos oferecer educação integral para todas as crianças”, argumentou.
Criminalização dos movimentos populares.

Durante a visita à Annoni, Tardelli concedeu uma entrevista para a Página do MST. Ele falou sobre a criminalização dos movimentos populares, a postura do poder judiciário frente ao golpe na democracia brasileira, e as tarefas das organizações de esquerda para o próximo período.

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Tardelli foi recepcionado por uma mística sobre a educação no campo, no Instituto Educar 

Confira:

O Brasil vive um momento de golpe na democracia e isso tem resultado também na criminalização dos movimentos populares. Recentemente houve a prisão de Sem Terras por pertencerem a uma organização social. De que forma o golpe compromete a democracia e os direitos conquistados?

É visível a criminalização dos movimentos sociais. E, talvez, o movimento mais visado pelo atual governo seja o MST. Quando você associa um movimento social a uma organização criminosa, a primeira consequência disso é que ele perde completamente a sua natureza reivindicatória. Você transforma as pessoas que integram um movimento de transformação social em meros operadores de uma criminalidade baixa e barata, com se elas quisessem se locupletar do dinheiro de todos. É comparar o MST à máfia, a uma facção criminosa, a um grupo de traficantes ou contrabandista. Nisto, além de um absurdo ético, há um absurdo jurídico.

A constituição federal assegura o direito de reunião, manifestação do pensamento e representação às autoridades políticas. Ela assegura o livre pensar. Quando se tenta criminalizar os movimentos sociais, ocorre também a banalização de direitos. A diferença entre o MST e o movimento ruralista é o lado da cerca, porque todos são organizações sociais, assim como o Rotary Club e a maçonaria. Então quando há criminalização, se criminaliza o movimento de reivindicação, aquele que busca uma forma de ascensão social de milhares de pessoas que não estão inseridas dentro da realidade econômica e que são meros expectadores da história. A criminalização dos movimentos resulta no fascismo. Essa criminalização que está ocorrendo tem relação com o golpe. O próprio golpe é a criminalização da política, porque ele criminaliza a atividade política. A pedalada fiscal nada mais é que a criminalização da atividade política de uma pessoa, especificamente de uma pessoa: a presidenta da república. Se fossem os outros demais pedaladores, todos os governadores de estado, nós teríamos um movimento muito maior que este, entre outras coisas.

Você concorda que o poder judiciário contribuiu para a efetivação do golpe?

Houve um golpe dentro do judiciário. Este, sempre esteve atrelado ao poder e quando o poder timidamente muda de mãos ele se junta às forças conservadoras. Historicamente, o judiciário sempre representou o rei, o império, a monarquia, a velha república, os grandes interesses. O judiciário repete uma ordem vigente capitalista e qualquer ameaça a essa ordem ele grita e aperta. É o que está acontecendo agora.

Qual orientação você deixaria aos movimentos populares para enfrentar a repressão e a criminalização?

Os movimentos não podem se intimidar. Isso não significa que eles têm que ser imprudentes, mas não podem se intimidar. Ninguém pode encolher e diminuir as reivindicações, e não se pode reivindicar e meramente desistir. O que foi conquistado não pode ser perdido, nunca. E o que tiver que ser conquistado tem que ser buscado. Claro que vai ser mais difícil, talvez até mais doido na pele, mas quem está numa organização popular tem que estar preparado para este tipo de situação. A história não é linear, é ilusão imaginar que a história se faz numa linha reta. Ela volta, é um novelo, um nó. Nós, hoje, estamos num nó cego, mas ele vai ser desatado. Não podemos de jeito nenhum recuar. O recuo representaria não somente o retrocesso, mas uma dispersão dos movimentos populares. Isso é tudo o que não pode acontecer.