O que está por trás do ‘Escola Sem Partido’?

Projeto propõe que professores sejam processados pelos conteúdos que ministram em sala de aula. E a ameaça que isso se torne lei é bastante concreta

Por Tatiana Carlotti
Da Carta Maior

 
O retrocesso na Educação e a grave ameaça à liberdade dos professores dentro da sala de aula são temas desta entrevista com o educador Fernando de Araújo Penna, doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Criador do site e da página no Facebook “Professores Contra o Escola Sem Partido”, Penna analisa o crescimento do Escola Sem Partido no Brasil, denunciando seu caráter ideológico e a forma tendenciosa como suas propostas estão sendo propaladas na sociedade brasileira. A ameaça de que essas propostas se tornem lei é concreta, aponta.

São vários projetos de lei do Movimento, dois deles aguardam tramitação no Congresso Nacional: um na Câmara dos Deputados, o PL 867/2015 de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB); e outro no Senado Federal, o PL 193/2016 apresentado pelo senador Magno Malta (PR-ES). Acompanhem a entrevista.

Carta Maior: Como surge o Escola Sem Partido?

Fernando Penna: O movimento foi criado pelo advogado Miguel Nagib, em 2004. Em 2014, o deputado estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro (PSC-RJ) pediu ao Miguel Nagib que escrevesse um projeto de lei com esse teor, intitulado Programa Escola Sem Partido. Ele foi o primeiro parlamentar a apresentar um projeto desses no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 2014.

Em seguida, apareceu o segundo projeto, também no Rio de Janeiro, apresentado pelo vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ). Era o mesmo teor, só que destinado ao município (confira os projetos aqui). Depois disso, a onda conservadora tratou de espalhar esses projetos pelo Brasil inteiro.

Existem dois nacionalmente: um na Câmera (PL 867/2015) do deputado Izalci Lucas (PSDB); e outro no Senado (PL 193/2016), do senador Magno Malta (PR-ES). Esse projeto de lei, apresentado no Senado, é uma versão mais atualizada que abrange, inclusive, a proibição da discussão de gênero nas escolas. É assim que o Escola Sem Partido ganha força, englobando essas pautas conservadoras.

Também já foram apresentados projetos do Escola Sem Partido em dez estados brasileiros e no Distrito Federal. Eles conseguiram aprovar em Alagoas, onde é lei, com o nome “Escola Livre”. Já foi retirado em Goiás e no Paraná.

Em relação aos municípios, não temos os números exatos, até pela dificuldade de acompanhar a aprovação desses projetos de lei municipais. Mas sabemos que já foi aprovado em Picuí (PE) e Santa Cruz do Monte Castelo (PR).

O que defendem esses projetos de lei?

Os defensores do Escola Sem Partido dizem que basta ler o projeto para saber do que se trata. Não é bem assim. É preciso conhecer a atuação do movimento para compreender esses projetos. Isso é possível acompanhando a página do Facebook ou o site deles. Conhecendo esses espaços fica evidente o que eles defendem.

Para eles, por exemplo, professor não é um educador. Uma das principais referências bibliográficas deles é o livro “Professor não é educador”, de um indivíduo chamado Armindo Moreira. A tese central do livro é a dissociação entre o ato de educar e o de instruir. Educar seria responsabilidade da família e da igreja; os professores dentro da sala de aula estariam limitados a instruir, a transmitir conhecimento. O que é um dado bastante preocupante.

O outro é a própria ideia de “doutrinação” em sala de aula. Eles se dizem contra a “doutrinação”, mas próprio projeto de lei não define o que eles chamam de doutrinação ideológica. Para entender, é preciso entrar na página do grupo. Lá existe uma aba intitulada “flagrando o doutrinador” (confira aqui). Ali, eles listam uma série de situações de “doutrinação ideológica”.

A primeira diz: “você pode estar sendo vítima de doutrinação política ideológica quando seu professor se desvia frequentemente da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional”. Segundo eles, o professor deve instruir e só pode falar da matéria, de forma isolada, sem tratar da realidade do aluno e do que está acontecendo no mundo, sem discutir o que acontece no noticiário ou na comunidade em torno da escola.

O professor também não pode discutir valores dentro da sala de aula – como se isso fosse possível… – porque a educação seria uma atribuição da família. Trata-se da tentativa de criação de um projeto de escola que remove, justamente, o caráter educacional desse projeto.

Eles afirmam que o projeto só quer fixar um cartaz em sala de aula. Intitulado “Deveres do Professor”, esse cartaz deveria se chamar “Proibições do Professor”, porque é uma lista de proibições formulada de maneira muito tendenciosa, para desqualificar o trabalho do professor.

Como eles fazem isso?

Eles misturam nessa lista práticas realmente condenáveis com práticas corriqueiras e desejáveis em sala de aula. Por exemplo, entre as proibições da prática docente consta: “o professor não fará propaganda política partidária dentro da sala de aula, nem incitará seus alunos a participarem de manifestações, atos públicos e passeatas”.

Que o professor não deva fazer propaganda política, estamos de acordo. Mas, eles proíbem a discussão política, ao afirmar que o professor não deve debater assuntos vinculados ao noticiário. Veja como eles misturam partes condenáveis com discussões que são vitais.

Falar sobre impeachment está fora de questão…

Na cabeça deles, de maneira alguma, por mais que os alunos tentassem trazer essa discussão para a sala de aula. A segunda parte da afirmação deles também é preocupante: “o professor não incitará que seus alunos participem de manifestações, atos públicos e passeatas”.

O professor deve incentivar sim a participação, de qualquer natureza e pauta, conforme o aluno sentir necessidade. O importante é que ele se sinta capaz de transformar a realidade na qual está inserido, e que participe de manifestações democráticas dentro do espaço público.

Agora, da forma tendenciosa como eles formulam, o professor é impedido de estimular os alunos a participarem da democracia. Eles apresentam a questão como se o professor incitasse os alunos a participarem. Chegam, inclusive, a dizer que o movimento estudantil é manipulado pelos partidos de esquerda, como se os estudantes não tivessem iniciativa alguma.

Há, ainda, uma página no site deles intitulada “Síndrome de Estocolmo”, onde eles afirmam que alunos que defendem os professores estão sofrendo dessa síndrome, na qual você se apega emocionalmente ao seu captor.

Como se daria esse controle dentro da sala de aula?

Eles querem criar um canal de denúncia anônimo entre os alunos e as secretarias de educação. Aí o professor seria processado pelo Ministério Público.

Há algum instrumento legal contra esse tipo de proposta?

A própria Constituição Federal. Ela afirma que um dos objetivos de educação nacional é preparar para o exercício da cidadania. Obviamente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) reforça esses valores, mas isso está muito aberto a interpretações.

O defensor da Escola Sem Partido vai dizer que a proposta deles nada mais faz do que garantir direitos estabelecidos na Constituição. Não é bem isso. O que eles fazem é uma interpretação equivocada da Constituição, com base em uma concepção absurda do que seria a escolarização e a educação.

No projeto deles, no artigo 2°, eles estabelecem princípios da educação nacional. Mas a nossa Constituição Federal já estabeleceu esses princípios. Se você conferir esses princípios no projeto do Escola Sem Partido, irá encontrar “pluralismo de ideias no ambiente acadêmico”. Ao olhar na Constituição, verá “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Percebe? Eles pegaram “pluralismo de ideias” nominalmente e excluíram “o de concepções pedagógicas”, que está no mesmo artigo da Constituição.

No projeto, dizem que vão defender “a liberdade de aprender do aluno”. Mas, na Constituição, está lá “liberdade de aprender, de ensinar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Eles excluíram a liberdade de ensinar do professor. Escolheram dispositivos constitucionais que remetem às atribuições, excluindo “pluralismo de concepções pedagógicas”, “liberdade de ensinar”. A partir dessa visão, o professor não tem mais liberdade de expressão no exercício da sua atividade profissional.

Há, também, uma ilusão nessa proposta: a de que o aluno poderá usufruir da sua liberdade de aprender se o professor não dispor da sua liberdade de ensinar. Isso é uma falácia. Como o aluno terá liberdade de aprender se o professor não puder dar diferentes conceitos pedagógicos? Se não pode ter liberdade de ensinar? Se não tiver liberdade de expressão dentro da sala de aula?

Há possibilidades de isso passar no Congresso?

Dentro do atual Congresso Nacional existe um clima favorável à votação desse projeto. Ano passado foram realizadas várias audiências públicas sobre o tema, todas dominadas por defensores do Escola Sem Partido. Então, se não tiver uma manifestação grande da sociedade civil e dos movimentos sociais, haverá um clima favorável à aprovação desses projetos sim.

Como você avalia a “neutralidade” do Escola Sem Partido?

Eles dizem que o professor tem de ser neutro na sala de aula, certo? O Miguel Nagib, criador do movimento, foi articulista do Instituto Millenium. No artigo “A ideologia do Escola Sem Partido” (confira aqui), publicado no site “Professores contra a escola sem partido”, há um print da coluna de Nagib no Instituto Millenium.

Entre os artigos atribuídos a ele, conforme mostra o print, consta “Por uma escola que promova os valores do Millenium”. Eles tiraram a autoria do Nagib depois, agora está apenas “Comunicação Millenium”. Quais valores eles consideram “neutros”? Propriedade privada, responsabilidade individual, meritocracia…

É ideológico também porque ao proibir a discussão de algumas questões, você está tomando um posicionamento. Não discutir práticas hegemônicas, homofóbicas e toda a variedade de desigualdades significa o quê? Não combater essas desigualdades é reforçá-las na sociedade. É naturalizar essas desigualdades.

Além disso, qualquer um que visitar a página do Escola Sem Partido no Facebook notará o ataque direto contra o PT. É um movimento altamente ideológico. De neutro, o Escola Sem Partido não tem absolutamente nada.

Na sua avaliação, como o movimento conseguiu tanta força?

Desde 2004, os setores mais conservadores estão falando sobre o Escola Sem Partido e nós os deixamos falar, sem uma oposição consistente a esse discurso. Enquanto nós o considerávamos uma grande besteira, “coisa de malucos”, ele se propagou e, agora, eles estão ganhando força. Tanto que um dos primeiros atos do ministro Mendonça Filho (Educação) foi receber uma comitiva do Revoltados Online – movimento que nunca levaríamos a sério – com o Alexandre Frota para defender essa pauta.

O segundo fator é o contexto de crise que fortalece os movimentos conservadores. Eles procuram associar tudo de ruim que está acontecendo ao que classificam como “petismo”, “petralhas”. Em vídeo recente, Miguel Nagib diz que “o petismo foi tirado da Presidência, mas o petismo continua dominando a máquina do Estado, especialmente a rede educacional”. Da forma como montam esse discurso, eles reduzem todo o pensamento progressista e de esquerda a esse espantalho que pretendem criar sob o nome de “petralhas”. Essa é a estratégia deles.

Terceiro fator, eles pretendem levar a dicotomia que estamos vivendo no campo político para o campo educacional, como se todos os professores fossem militantes do PT e estivessem disseminando ideias partidárias nas escolas.

Como lutar contra esse discurso?

Nós precisamos ir além do simples “eles são fascistas” ou “um bando de malucos” e desconstruir as ideias do Escola Sem Partido, demonstrando os vários equívocos e absurdos que estão sendo defendidos. Precisamos todos entrar neste debate e não apenas os professores, mas também os pais e os alunos, porque se trata de um debate que diz respeito à escola brasileira.

Pessoas que não sabem do que se trata ouvem “Escola Sem Partido” e pensam: “isso é bom, escola não deve ser dominada por nenhum partido”. O nome caiu muito bem. Os movimentos conservadores sabem utilizar a linguagem das redes sociais e do senso comum. Um vereador, inclusive, disse que havia assinado o projeto sem ler. Temos, portanto, que mostrar aos legisladores que existe uma forte resistência contra esses projetos.

E divulgar as informações em todos os espaços possíveis. Neste sentido, nós construímos uma ferramenta muito importante que é a página “Professores contra o escola sem partido” no Facebook (confira a página aqui). Atualmente contamos com 30 mil seguidores.

Essa página também está vinculada a outras páginas locais de combate ao Escola Sem Partido, como as de Alagoas, Rio de Janeiro, Campo Grande, Amazonas e vamos criar uma da Bahia. É, portanto, um instrumento de articulação nacional no âmbito das redes sociais.

Fora isso, recentemente, foi lançada a Frente Nacional contra o Escola Sem Partido, no Rio de Janeiro. Essa Frente está sendo criada agora e conseguiu, dentro do campo mais progressista, uma adesão muito grande, com a participação de entidades de educação, sindicatos, movimentos sociais, parlamentares de todo o espectro da esquerda. Sem dúvidas, a Frente será um instrumento importante para que possamos conseguir uma mobilização mais organizada pelo Brasil inteiro.

Clique aqui e confiram o site “Professores contra o escola sem partido”. Leia também o manifesto “Em Defesa da Liberdade de Expressão na Sala de Aula”, subscrito por mais de 160 entidades ligadas à área de Educação (leia aqui). E não deixem de conferir aqui o recente debate no Canal Futura (19.07.2016) entre Fernando Penna e Miguel Nagib.