Organizações e movimentos populares defendem o “sentido da escola”

Reunidos em torno de uma Frente Nacional, o diverso conjunto de entidades destaca a ameaça à formação para a vida pela educação com a aprovação do PL “Escola sem Partido”
Organizações de classe e movimentos sociais debatem impactos da PL Escola em Partido. (Foto Mídia Ninja).jpg
Fotos: Mídia Ninja 

 

Por Lizely Borges
Da Página do MST

 

Movimentos populares, entidades de classe da educação, estudantis e de direitos humanos e parlamentares de mandados progressistas tem buscado construir, progressivamente, o debate com o conjunto da sociedade sobre os impactos na efetivação do papel da escola na formação para o exercício da cidadania com a aprovação, em todas as esferas da administração pública, de projetos de lei que tem como inspiração o Programa Escola sem Partido.

Renomeado pelos profissionais da educação como “Lei da Mordaça”, pelo fato de estabelecer controle sobre os conteúdos ministrados em sala de aula, o Programa apresenta como tese central a necessidade de dissociar o ato de instruir ao de educar e propõe que professores devem limitar-se a transmitir a “matéria objeto da disciplina”, sem discutir valores e a realidade dos estudantes. A tarefa de educar cabe, segundo defensores do Programa, à família e à religião.

“Programas como este compreendem que a escola é apenas um espaço de instrução quando na verdade ela é um espaço de socialização do conhecimento, para além da questão da instrução. É espaço da formação humana, portanto é necessário que se estabeleça uma serie de tempos e espaços pedagógicas capazes de formar crianças e jovens em uma perspectiva transformadora. Então estes projetos de lei são um atentado ao direito a educação na medida que proíbe o professor a opinar, a construir situações didático-pedagógica que leve o aluno a fazer a reflexão sobre o mundo”, destaca o integrante da coordenação do setor de educação do Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Erivan Hilário.  

Para Erivan, o cerceamento do debate nas escolas no campo afeta diretamente a relação de pertencimento do estudante com a terra e sua identidade. “Quando você pensa na educação do campo você tem que pensar num diálogo permanente com as questões do campo, com as dimensões do trabalho e da cultura. Imagine você pensar uma educação no campo em que você não dialoga com estas dimensões das relações humanos tão fundamentais na formação de crianças e jovens? ”, questiona.

O Programa

O programa Escola sem Partido surgiu em 2004, pela ação do advogado Miguel Nagib. Uma importante referência para o Programa é o livro “Professor não é educador”, de Armindo Nogueira. Nagib também é um dos grandes articulistas do Instituto Milenium (Imil). Criado em 2009, é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que reúne entidades representativas e de veículos da comunicação comercial (Grupo Abril, Estadão, Abert) e outros setores do capital privado (Gerdau, Brain, Suzano, Bank of America).

A organização foi uma resposta do setor privado à defesa do debate público e participação popular na política de comunicação, expressa na realização da I Conferência Nacional de Comunicação, realizada no mesmo ano de criação da Imil.

Para o Programa, a intervenção nos espaços de ensino é necessária porque “professores de todos os níveis vêm utilizando o tempo precioso de suas aulas para “fazer a cabeça” dos alunos sobre questões de natureza político-partidária, ideológica e moral”.

De acordo com o Programa Escola sem Partido, a “doutrinação ideológica” dos estudantes pelo professor se manifesta no “desvio da matéria objeto da disciplina para assuntos relacionados ao noticiário político ou internacional” ou “aliciamento de alunos para participar de manifestações, atos públicos, passeatas, etc.”

Diante de crise de legitimidade da política profissional e dos partidos políticos e um crescente espaço para manifestação em favor de retrocessos nas garantias individuais e coletivas, em oposição à defesa dos direitos humanos, o Programa encontrou, mais fortemente nos últimos anos, uma aceitação por parte da opinião pública.

De acordo com o professor da Universidade Federal Fluminense e opositor ao Programa, Fernando de Araújo Penna, em entrevista à Carta Maior, os defensores deste Programa colocam num só lugar contextos muito diversos de diálogo da escola com a política e a realidade: “Eles misturam nessa lista práticas realmente condenáveis com práticas corriqueiras e desejáveis em sala de aula. Que o professor não deva fazer propaganda política, estamos de acordo. Mas, eles proíbem a discussão política, ao afirmar que o professor não deve debater assuntos vinculados ao noticiário. Veja como eles misturam partes condenáveis com discussões que são vitais, ”destaca Fernando.
 
 

Erivan Hilario, menbro da coordenação do setor de educação do MST. (Foto Mídia Ninja).jpg
Erivan Hilário (Setor de Educação do MST) 

PLs em tramitação

Segundo levantamento feito pelo Centro de Referência em Educação Integral, projetos de lei com este mérito tramitam em cinco estados (Amazônia, Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro), oito capitais e no Distrito Federal. Já foi aprovado em Alagoas com nome “Escola Livre” e nos municípios de Picuí (PE) e Santa Cruz de Monte Castelo (PR). Nos estados do Paraná e Ceará o PL foi rejeitado.

Na esfera federal, destacam-se dois projetos de lei de inclusão do Programa Escola sem Partido nas diretrizes e bases nacionais da educação – o PL 867/2015, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF/ES), em tramitação na Câmara e o PL 193/2016, do senador Magno Malta (PR), em tramitação na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado. Este último abrange, inclusive, a proibição da discussão sobre gênero em sala de aula.  

Previsões do Projeto de Lei

O PL 193/2016 tem recebido grande atenção de organizações e movimentos populares pela agilidade que tramita no Congresso Nacional, sem debate público, e pelas disposições que estabelece para monitoramento e punição à profissionais que descumprirem a norma da lei. Protocolado no início do mês de maio deste ano, o PL encontra-se com o relator Cristovam Buarque (PPS/DF), para emissão de parecer.

Na apresentação dos princípios deste Projeto de Lei, ainda que apresente os princípios constitucionais da liberdade de aprender e ensinar e pluralismo de ideias no espaço acadêmico (Artigo 206), o PL defende que a presença de conteúdos de “determinadas correntes políticas e ideológicas para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis”.

Para então coibir estas práticas o Projeto determina a fixação de cartazes nas salas de aula com o conteúdo do PL, e prevê a criação de um canal de denúncia entre alunos, ministérios e secretarias de educação para “recebimento de denúncias de descumprimento da lei”. Os casos passariam a ser avaliados pelo Ministério Público, sob pena de responsabilidade.

O impacto para o profissional de educação

Para o coordenador geral do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe), Fabiano Godinho Faria, a aprovação das leis da “mordaça” cria um contexto preocupante de cerceamento da livre atuação do profissional da educação e de institucionalização da criminalização das práticas pedagógicas: “Nunca antes a gente vivenciou uma ameaça de demissão e prisão por delito de opinião, de liberdade de expressão. Sem dúvida é o projeto de lei, do ponto de vista dos valores democráticos, mais retrógrado que este pais já viu e que parte de pressupostos muito equivocados – a de que a escola forma subversivo. Na cabeça deles [dos defensores do PL] subversivo é o cidadão que repudia a violência contra a mulher, a homofobia, o exercício do preconceito e que vê que a ditadura militar como tempo duro que deve ser superado. Quem dera que a educação que temos tivesse o poder de formar uma massa crítica tão grande como os autores do projeto temem”, pondera Fabiano.

Assim como Erivan, a presidenta do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), Eblin Faraje, ao impedir a abordagem de conteúdos em toda a variedade de temas relacionados às realidades sociais a escola tem sua função violada. “Essa lei da mordaça vem para criminalizar o professor que tenta inclusive construir uma educação dialógica, que vá para além dos muros da sala de aula, que dialogue com a vida real, com os problemas reais. É imposição aos professores da impossibilidade de eles tratarem temas da vida cotidiana em sala de aula, é destituir a escola, a universidade do pensamento crítico que tente contribuir para o avanço da consciência de juventude, das crianças nos nossos estabelecimentos de ensino”, pontua ela.

Posição dos estudantes

O PL 193 também possibilita a penalização dos estudantes que se contraporem, em sala de aula, ao previsto pela lei ao determinar que “não permitirá que os direitos assegurados [pelo PL] sejam violados pela ação de estudantes ou terceiros”. A presidenta da União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), Camila Lanis, prevê a criminalização progressiva das organizações estudantis com a aprovação. “Ele visa censurar de forma muito agressiva as organizações sociais dentro da escola, sejam sindicatos ou grêmios estudantis, privando o professor e o aluno de falarem sobre política e a história do nosso país. Uma verdadeira ameaça à democracia, a gestão democrática e principalmente a vida saudável na escola”, argumenta Camila.

O diretor de relações institucionais da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Campos, questiona um dos argumentos centrais da defesa do Projeto de Lei – a de que a educação é ideológica: “Não existe escola onde não haja debate político, a política faz parte de todas as relações humanas, inclusive da formação e educação. Assim como acreditamos que não existe neutralidade, ela é uma farsa, portanto é impossível falar de uma prática que não exija posicionamento de professores, dos estudantes, até o próprio projeto é uma posição, é uma partidarização”.

Camila ainda pontua que a proposição de projetos de lei com este teor não apenas revela a tentativa de imposição de um pensamento único, sob argumento do combate da “partidarização da escola”, como também evidencia o desconhecimento da realidade da escola e ausência de compromisso com a educação. “Estes segmentos baseados no ódio que estão pautando a Escola sem Partido desconhecem a realidade da escola pública porque se conhecem iriam debater a falta de merenda, de professor, de funcionários, de carteira, de material didático. É muito triste ver o quanto as pessoas se dedicam a desviar a real atenção do que precisa a escola –  não precisamos de uma lei que censure mas que amplie a liberdade e expressões”, diz Camila.

Relação com agenda conservadora

Para as organizações e movimentos populares ao mesmo tempo que houve avanços importantes na efetivação e reconhecimento de direitos pelo Estado para alguns segmentos da população, por exemplo com a aprovação de lei de cotas e reconhecimento da união homoafetiva, há um projeto conservador em curso nas últimas décadas, e que se manifestou mais intensamente no último ano. Exemplos são os esforços para a redução da maioridade penal, a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e Direitos Humanos e revogação de decretos de titulação de terras indígenas e quilombolas, estas últimas medidas adotadas pelo presidente em exercício, Michel Temer.

A incidência dos setores conservadores na pauta da educação é progressiva. Com composição de 196 deputados federais dentre 513 deste atual mandado parlamentar, em oposição ao reduzido número de 24 deputados federais ligados aos direitos humanos, a bancada evangélica, em diálogo com frentes do agronegócio, empreiteiras e construtoras, indústria bélica, entre outros setores, tem impresso um intenso ritmo de agendas conservadores à pauta da educação – como, por exemplo, a retirada do debate de gênero da educação, encerramento do Programa Ciência sem Fronteiras na Graduação e a Proposta de Emenda Constitucional 241/2016, apresentada por Temer em maio deste ano, que estabelece um novo regime fiscal para gastos com saúde e educação.

Este crescente avanço conservador preocupa os atores sociais da educação: “o Escola sem Partido há poucos anos atrás seria uma piada. Há PL no Senado que defende o aborto de crianças mediante uma avaliação genética do feto para avaliar se tem uma tendência a ser bandido. Hoje isso é uma piada, será que no futuro será? A gente está em pela vigência de golpe de estado”, problematiza Fabiano.

Debate público

Reunidos em torno da Frente Nacional Escola sem Mordaça, um coletivo composto por um espectro diverso de organizações, movimentos populares e mandatos progressistas reunidos após a início da tramitação do PL 193, a Frente tem desenvolvido ações pelo país. “É fundamental que toda a população, pais, mães, juventude se mobilizem contra esta PL e que não fique só sob responsabilidade dos professores. É fundamental envolver a população sob risco de acabar o sentido do que é a escola”, diz Eblin.

Para Erivan deve ser privilegiado o debate público com os sujeitos afetados diretamente pelas medidas: “é preciso chegar na ponta, ou seja, nas escolas do país, naqueles que serão criminalizados pelo ato de educar. Na medida que o projeto de lei diz que compete a escola apenas ensinar nos reafirmamos que a escola é um espaço de educar, que vai além do âmbito da instrução. Vimos o quanto os estudantes têm a dizer sobre a escola como que aconteceu no último período quando os estudantes tiveram suas escolas fechadas eles a ocuparam num sinal claro de que a escola é um patrimônio da sociedade e que os estudantes estão dispostos a lutar por ela

No início deste mês o ministro da Educação do governo em exercício, Mendonça Filho, manifestou-se que os projetos de lei ligados ao Programa Escola sem Partido apresentam “quase impossibilidade de aplicabilidade” pela inconstitucionalidade da medida. No entanto, o debate público é iniciante diante dos passos largos da tramitação dos PLs e movimentação nas pautas da educação.

Foi aberta uma consulta pública pelo site do Senado, no canal E-Cidadania, sobre o PL 193/2016 e a proposta do Escola sem Partido. Até o momento de fechamento desta matéria contabilizavam 190.341 votos contrários ao PL e 180.162 favoráveis. A consulta deve ocorrer até o projeto ir à votação.

* O MST entende que o projeto Escola Sem Partido cerceia a liberdade de manifestação do educador,  subverte a atual ordem constitucional e impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, além de negar a laicidade do Estado prevista na Constituição de 88, a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem.

Para acompanhar as ações da Frente Nacional Escola sem Mordaça, clique aqui.

O portal e-Cidadania, do Senado Federal, abriu consulta pública sobre o Programa Escola Sem Partido, acesse e vote aqui 
 

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