“Há uma política óbvia de apagamento da memória de que existe educação no campo”

Reitor da UFRJ, Roberto Leher aponta o desenvolvimento de uma política educacional intencionalmente orientada para o esvaziamento do campo e de base à exploração da terra pela iniciativa privada.
O reitor da UFRJ Roberto Leher, reflete sobre o desenvolvimento de uma política educacional de esvaziamento do campo 1.JPG
Reitor reflete sobre o desenvolvimento de uma política educacional de esvaziamento do campo.

 

Por Lizely Borges
Da Página do MST

 

O modelo de financiamento e de avaliação da educação, que tem por base o número de alunos e não as especificidades dos sujeitos e suas realidades, impacta negativamente na estruturação das escolas rurais e da política educacional para o campo. O fechamento de mais de 40 mil escolas do campo nos últimos quinze anos é visto com preocupação pelos movimentos populares, profissionais da educação e universidades.

Em entrevista, o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor da faculdade e pós-graduação em educação na mesma universidade, Roberto Leher, problematiza a relação entre a adoção da política educacional brasileira para o campo e a base de sustentação para avanço do agronegócio. Ele aponta a necessidade de fortalecimento das frentes de defesa da educação pública: “Manter a chama acessa da educação do campo é elemento estratégico para sairmos desta situação negativa de correlação de forças nas lutas pela educação pública no país”, destaca.

A conversa abaixo foi realizada após a audiência pública sobre educação do campo, realizada no dia 15 de setembro, em Brasília-DF, pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados. A atividade teve participação de movimentos populares, sindicatos vinculados às lutas pela educação e universidade públicas. Ao final da audiência foi lançada a Campanha Educação é Direito, Não é Mercadoria, uma ação do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec) em resistência à mercantilização em curso da política educacional.

Nas próximas semanas, como estratégia para ganhar corpo e amadurecer o debate, devem ser realizados lançamentos da Campanha nas universidades que desenvolvem os cursos de licenciatura em educação do campo pelo país. Confira a entrevista.

Por que a educação do campo necessita de uma política pública educacional específica?

Roberto Leher – Uma escola do campo hoje é um espaço que está forjando uma concepção de sociedade e civilização. Estas escolas precisam existir como centros pulsantes do sistema educacional brasileiro, elas são estratégicas para o futuro deste sistema educacional. No entanto, para a existência destas escolas é preciso seguir uma lógica que não é racionalidade da eficiência do custo-aluno, porque são escolas de menor porte que atendem um número menor de estudantes, mas são escolas que estruturam uma vida social pulsante no território. Estas escolas que acabam sendo duramente penalizadas criando de um ciclo vicioso: poucos estudantes, poucos recursos, a escola fica precária, perde estudantes. E para isso nós precisamos mudar a racionalidade do financiamento pelo número de alunos que estão nas escolas.

Além disso, nós temos um problema social gravíssimo que é o transporte escolar. Não é possível que crianças pequenas tenham que ficar todos os dias, duas horas e meia ou três horas em transportes precaríssimos para poderem se deslocar para suas escolas.

Por todos os motivos nós precisamos ter políticas que fortaleçam estas escolas como espaços culturais, científicos, tecnológicos, civilizatórios que dão sentido a uma vida social nos nosso país.

As realidades do campo são quase exclusivamente conhecidas por quem as vivem, num contexto de invisibilidade para a população urbana. Como é construída a invisibilidade das realidades do campo e a ideia de que os sujeitos do campo não precisam qualificar-se, que o campo deve estar sob controle daqueles que sabem fazer uso para um melhor desenvolvimento da nação, uma lógica orientada para o esvaziamento do campo e mercantilização da terra?

Leher – Estas escolas que estão sendo invisibilizadas – e concretamente já estão, já que perdemos 40 mil nos últimos quinze anos – sofrem um esvaziamento com base na argumentação de que a modernização da agricultura irá suprimir a existência do campesinato. No entanto, se examinarmos a situação concreta da produção de alimentos hoje em nosso país vamos constatar que, ainda no século XXI, e de forma mais relevante, inclusive na busca de alimentos mais saudáveis, a agricultura camponesa e familiar são determinantes para termos, de fato, alimento nas nossas mesas. Sem essa agricultura nós não vamos ter condições de um futuro com saúde e qualidade de vida para o conjunto da população.

Quais são as principais ameaças presentes, neste momento, à autonomia da política educacional do campo?

Leher – Hoje temos essencialmente uma racionalidade mercantil de que a eficiência da escola é medida por parâmetros estranhos à ciência e à educação, são parâmetros importados dos setores produtivos.

Há um sistema de avaliação que opera essa racionalidade de uma lógica de eficiência que leva a conclusão de que estas escolas são pouco eficientes e, portanto, devem ser fechadas. Nós temos que quebrar essa racionalidade, mudando a ótica de como financiamos as escolas públicas no campo. Precisamos financiar as escolas não com base no número per capita, mas no custo real de uma escola, no que deve ser básico para uma boa escola, ainda que de pequeno porte, no campo.

Estamos acompanhando com preocupação os desdobramentos da política e economia do país e seus desdobramentos para a educação pública. Está em curso, há muitos anos, uma narrativa chamada “vazio do campo”. A população brasileira é hoje essencialmente urbana e o campo, com a modernização, paulatinamente estaria sendo reconfigurado como área de expansão do agronegócio, e este se expandindo de maneira legítima porque o campo está vazio. E como o campo está vazio não há problemas em expandir fronteiras.

Esta narrativa de esvaziamento do campo é uma política estruturada que se condensa na área de educação num processo avassalador de fechamento de escolas no campo. Se distribuirmos as 40 mil escolas extintas territorialmente podemos ver uma política óbvia de apagamento da memória de que existe educação no campo, e o apagamento da escola do campo é também o apagamento das crianças, jovens e adultos, das lutas e daqueles que lutam pela existência de um modo de vida na agricultura camponesa que se confronta com agronegócio.

Esta narrativa encontra suporte sólido nas teorias da modernização, formulações desde os anos 50. Este tema é fundamental porque vem legitimando o fechamento das escolas como também política de desconstrução material e simbólica da educação no campo – são escolas sem nenhuma estrutura, sem atendimento adequado de água, esgoto, biblioteca – são esvaziamentos sucessivos – e isso encontra resistência não apenas ainda importante literatura crítica que temos no país.

E qual a perspectiva para o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária (Pronera)?

Outro é defesa do Pronera. Se não tivermos condições de formar professores que tem vinculação com os movimentos sociais… A escola do campo, a pedagogia que vem sendo construída requer a presença de intelectuais e organizadores que são militantes do campo. E isso tem que ser feito junto com universidades públicas pelo Pronera. Temos que seguir debatendo que programas sejam auto-organizados pela universidade e movimentos sociais, seguindo construindo um conjunto de formuladores, de intelectuais que estão organizando a educação no campo, junto com as luta sociais.

 

 

*Editado por Rafael Soriano