Movimentos populares e organizações sociais protocolam denúncia em defesa dos direitos humanos

A peça jurídica solicita informações ainda não respondidas sobre a invasão policial da Escola Florestan Fernandes e pede a responsabilização dos agentes de segurança envolvidos
Coletivos e movimentos populares registram denúncia sobre atuação da policia civil de São Paulo na ENFF. Fonte Equipe jurídica .jpeg
A imagem registra o uso de arma letal pela Policia de São Paulo. Ao fundo, a agressão ao professor da ENFF, Ronaldo Valença, de 64 anos.  Foto Equipe juridica

 

Por Lizely Borges
Da Página do MST 

 

Na tarde desta segunda-feira (21), um conjunto de organizações sociais e movimentos populares protocolaram em órgãos públicos e espaços de defesa de direitos humanos uma denúncia sobre o conjunto de violações de direitos humanos cometidas por policiais civis na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) contra militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), estudantes e professores. A ação da polícia civil de São Paulo na escola de formação do MST, localizada em Guararema (SP), ocorreu no dia 04 de novembro.

Sob a justificativa do cumprimento de ordem judicial de prisão, oriunda do Juízo de Direito da Comarca Quedas do Iguaçu- PR, a polícia invadiu a sede da Escola. A ação foi acompanhada por descumprimento de regras do processo legal, violência física e ameaças à integridade das pessoas presentes. 

“Nosso objetivo principal é denunciar as violações cometidas na ENFF para que sejam apuradas as responsabilidades. Não podemos admitir que, em um estado democrático de direito, agentes públicos, os policiais invadam com violência a sede de uma escola, sem qualquer atenção aos procedimentos legais que autorizam e regulamentam a realização deste tipo de operação policial”, destaca a advogada da Terra de Direitos, Luciana Pivato. A organização não-governamental Terra de Direitos assina a denúncia, conjuntamente com outras organizações e movimentos populares. 

A peça jurídica foi elaborada após análise do processo judicial que decretou a prisão de integrantes do MST no Paraná, dos inquéritos policiais disponibilizados à equipe jurídica do caso e dos registros em vídeos e fotos da atuação da polícia, somados aos depoimentos das pessoas presentes e matérias jornalísticas sobre o fato. 

Assinada por um plural espectro de organizações de atuação na defesa de direitos humanos, a denúncia foi protocolada na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) do Ministério Público Federal, no Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), no Conselho Nacional de Direitos Humanos e Minorias (CNDHM) da Câmara e Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal.

 

Capsula deflagrada pela Policia Civil na invasão à ENFF. Foto Equipe juridica de denúncia.jpeg
Capsula deflagrada pela Policia Civil na invasão à ENFF. Foto Equipe juridica de denúncia

Denúncias sobre atuação do Sistema de Justiça

A ação da polícia civil na ENFF se inscreve dentro uma complexa operação realizada nos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Batizada de “Castra”, a operação teve como principal objetivo prender lideranças dos Acampamentos Dom Tomás Balduíno e Herdeiros da Luta pela Terra, localizados na região central do Paraná – região de forte conflito entre expoentes do agronegócio, poder público local e trabalhadores rurais. 

Sob a justificativa de cumprimento de mandado de prisão preventiva contra Margareth Barbosa de Souza, foram cometidos, segundo apresenta a denúncia, violações aos direitos humanos e aos processos legais para a ação de busca e apreensão.

Central na denúncia, as organizações apontam a violação do preceito de inviolabilidade do domicílio e a ausência de vínculo entre a ENFF e a pessoa a quem se destinava o mandado de prisão. “A incursão de policiais em domicílio alheio é absolutamente ilegal se não há mandado judicial de busca e apreensão expedido por um juiz competente”, aponta a denúncia. De acordo com o Código de Processo Penal para o procedimento de cumprimento de prisão preventiva é necessária a apresentação de duas cópias originais do mandado. Segundo consta na denúncia, na abordagem policial foi apresentada apenas uma imagem na tela de um celular. 

Durante a abordagem policial, ao ser comunicada verbalmente a prisão preventiva de Margareth, advogados presentes na Escola comunicaram que ela não estava presente no local, não residia ali e nem era funcionária da Escola. No entanto, foi dada sequência à busca ilegal pela senhora no local.

Para as organizações e movimentos proponentes da denúncia, a ausência de vínculo entre a Escola e Margareth e o descumprimento de preceitos legais que envolve a busca e apreensão revelam um caráter ilegal e interessado da ação policial. “Com base em que informação se poderia supor que a Sra. Margareth Barbosa de Souza se encontrava na sede da Escola Nacional Florestan Fernandes, se ela não trabalha e nem reside naquele local? Como poderiam ter os policiais chegado a essa conclusão? ”, problematiza a denúncia.

Para o advogado responsável pelo caso, Diego Vedovatto, as motivações da invasão da ENFF precisam ser esclarecidas. “Todos os atos judiciais devem ser devidamente fundamentados e até o momento não foram informadas as razões pelas quais a polícia civil de São Paulo e Quedas de Iguaçu [onde foi expedido o mandado] compreenderam que a pessoa a quem se destinava o mandado de prisão eventualmente estaria na Florestan”, destaca. Alinhado à preceitos da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Art.11) e Constituição Federal de 1988 (Art 5º), Vedovatto caracteriza a violação da ENFF como abuso de autoridade. “O caso revela-se um verdadeiro abuso diante da invasão injustificada à escola. É uma violação ao Estado de Direito a polícia invadir o domicílio de quem quer que seja sem apresentar o respectivo mandado judicial devidamente fundamentado”, complementa.  

Outra grave acusação da denúncia refere-se à violência física empregada e ameaça de morte às pessoas presentes. Em depoimento à Delegacia de Polícia de Guararema, o professor e morador da Escola de Formação, Ronaldo Valença, de 64 anos, relatou que, ao ser solicitada pela polícia a apresentação dos documentos de identificação às pessoas presentes na entrada da Escola, e diante da resposta de Ronaldo de que iria buscar seu documento, o professor conta que um dos policiais pulou a janela de acesso à ENFF, declarou voz de prisão ao professor e o algemou, lançando-o com força ao chão.

Com Parkinson, Ronaldo teve uma costela fraturada constatada por exame de raio-x no posto de saúde local, em decorrência de socos e pontapés dos policiais quando o professor já estava imobilizado. Ele ainda relata que, neste momento, foram disparados tiros pela polícia como forma de afastar pessoas que tentarem lhe prestar socorro. Na ocasião, mais uma integrante da Escola foi ferida. De acordo com a coordenadora da ENFF, Rosana Fernandes, o professor está se recuperando, mas ainda faz uso de medicações por conta das lesões.

Os advogados do caso destacam também o fato da polícia portar armas letais contra pessoas desarmadas, apresentando riscos à integridade física de crianças, adultos e pessoas idosas presentes no ato da invasão. Mesmo diante da ausência de resistência por parte das pessoas, a polícia também fez ameaças verbais aos presentes. “Eu acho que vocês vão perder. Eu acho que alguém vai sair morto daqui. Pode ser nós, pode ser vocês”, intimida um policial não identificado em vídeo veiculado pela imprensa. A peça jurídica destaca também o fato de que os policiais não estavam devidamente identificados.

 

A imagem registra o uso de arma letal pela Policia de São Paulo. Ao fundo, a agressão ao professor da ENFF, Ronaldo Valença, de 64 anos.  Foto Equipe juridica.jpeg
Coletivos e movimentos populares registram denúncia sobre atuação da policia civil de São Paulo na ENFF. Fonte Equipe jurídica 

Pedido de procedimentos

Diante das violações mencionadas acima, as organizações e movimentos responsáveis pela denúncia solicitam a apuração dos fatos pelos órgãos competentes, o acesso à documentos que instruíram a operação e a instauração de procedimentos legais para a responsabilização dos agentes policiais que dispararam tiros, executaram agressões e promoveram ameaças às pessoas.

“São órgãos responsáveis pelo atendimento às solicitações da sociedade civil relacionadas às violações de direitos humanos. Esperamos que eles ajam com imparcialidade diante das violações atendendo aos pedidos formulados”, diz Vedovatto. “A denúncia leva a conhecimento de órgãos públicos e espaços responsáveis pela defesa de direitos humanos a gravidade dos fatos ocorridos na ENFF. Estamos denunciando a ilegalidade e truculência da operação policial que foi registrada em vídeos e depoimento de pessoas feridas”, reforça Luciana.

Denúncia coletiva
               

A denúncia é assinada por vinte e três organizações da sociedade civil e movimentos populares de atuação nacional, regional e estadual em diferentes áreas, como direito à terra e à moradia digna, acesso à justiça e combate à tortura. Entre eles estão o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, a Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Justiça Global, o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), a Central de Movimentos Populares e o Grupo Tortura Nunca Mais (BA). 

Para Luciana, o sistema de justiça tem contribuído para agravar o já grave cenário de criminalização contra movimentos sociais. Casos como o da missionária Dorothy Stang, assassinada em 2005 por lutar contra o desmatamento na Amazônia (2005) são exemplo disso, uma vez que até mesmo a Irmã Dorothy, que vinha sendo vítima de graves ameaças, sofria contra si processo judicial que tentava a incriminar. Mais recentemente, outros os processos contra trabalhadores rurais, Vilmar Bordim e Leonir Orback, em Quedas do Iguaçu-PR em abril deste ano, são exemplares da repressão seletiva do Sistema de Justiça criminal. 

Ela verifica que a intensificação do recrudescimento da ação do Estado junto às lideranças sociais e movimentos populares em ações recentes exige uma ação articulada entre setores de defesa de direitos humanos, assim como ocorreu na elaboração da denúncia protocolada nesta segunda. “As organizações e movimentos consideram que ações como a da polícia na ENFF não devem ocorrer, é uma grave ameaça ao Estado de direitos e se configuram como ameaça para todos. A denúncia é uma tentativa para evitar que esse tipo de ação violenta se amplie”, diz.

Para Rosana a denúncia colabora para dar progressiva visibilidade às violações ocorridas pela invasão policial à Escola, bem como servir para conferir maior proteção às pessoas e movimentos populares. “Deve ocorrer toda ação de denúncia de violação de direitos humanos, a iniciativa de formalizar a denúncia serve para buscar os espaços para buscar proteção aos trabalhadores, além de viabilizar mais para o mundo sobre a ação truculenta e equivocada da polícia,” diz.

O MST recebeu, desde o fato ocorrido na ENFF, manifestações de organizações do Brasil e internacionais em apoio à Escola Florestan Fernandes e em repudio à ação do Estado Brasileiro.

Veja aqui a denúncia protocolada pelas organizações e movimentos populares.