Como uma Muralha

Na quinta noite do acampamento, nossos inimigos passaram em frente a Casa da Memória e atiraram pra cima. Algozes do latifúndio usando a linguagem armada que tão bem conhece a Curva do S

 

Por Julia Iara 
Da Página do MST

 

O coro da mística atravessou a pista e formou a primeira muralha do dia.  Com voz altiva anunciaram:

Aqui persisitimos, 
como uma muralha
Famintos
Nus
Provocadores 
Declamando poemas. 

E estavam certos. 

Na quinta noite do acampamento, nossos inimigos passaram em frente a Casa da Memória e atiraram pra cima. Algozes do latifúndio usando a linguagem armada que tão bem conhece a Curva do S, era o recado hostil dos assassinos da região. No sexto dia, mandaram avisar à direção que pensassem bem no que diriam no ato do dia 17 de abril.  

Eles ainda organizam medo contra nós. Eles ainda pensam que 21 anos depois da perseguição daquelas famílias, podem nos ameaçar numa esperança de mordaça. Eles não sabem nada sobre o nosso medo. Nosso medo organiza. Nosso medo é chumbo contra eles. 

Pois que nos sentamos, no raiar alto da alvorada, e decidimos: vamos falar sim! Nos encarávamos tensos, nenhuma resposta estava pronta e pela tensão que andava sinistra pelas redondezas nos últimos dias, seria necessário pensar estratégias pra proteger nossos camaradas, dirigentes da Região Amazônica ameaçados de morte, durante a fala no ato, sabendo que a fala delimita a ordem do alvo da bala. Decidimos que a fala do movimento seria coletiva, como fizemos em Curionópolis nos jograis. 

A ação nos espaços de conflito muda com qualquer sopro de perigo. Alteramos a ordem da mística e das falas de modo que houvesse sempre concentração de gente perto dos camaradas. Montamos espaço para falas de aliados e fizemos um coro de quinze declamadores jovens que acompanhasse os militantes da coordenação do ato. Era importante começar avisando. 

Sem Terra medo não tem
Pobre coragem possui 
Quando a força mata cem
Vem mil e substitui. 

Ao final do primeiro coro, passamos de 15 para 30. Maria disse: quanto mais gente melhor. E ali, antes da notícia chegar, nós já nos colocamos como uma muralha humana no palco, a segunda do dia. Sérios. Tensos. E nunca tão firmes. 

Quando passamos para 50 pessoas lado a lado, um camarada acenou lá de baixo, a expressão compenetrada:

– Diz pra Maria ir mais pra trás, tem dois armados de olho nela…

Bastou isso. A conexão entre os dirigentes foi absoluta e imediata. Não tivemos medo de fazer a linha de frente. Nos olhávamos nos olhos e acenávamos nossos entendimentos. Se tínhamos medo? Tínhamos. Um medo da não ação. Cada vez que uma companheira ou companheiro se locomovia, nosso olhar procurava inimigos em volta e corria pra junto. Uma mulher, também militante, também dirigente, coordenava as falas sem vacilar nenhuma vez. Admiramos a coragem dela. O ar pesado, “aquele ali de verde, tá armado”, um camarada cochichou, atento.  Passamos o recado pro companheiro de fileira, que passou pra próxima, que passou pra trás e adiante. Vigiamos lá de cima. E qualquer um entre os tantos observadores poderia ser suspeito pra nós. Insegurança. Incerteza. 

Cercamos a liderança sob ameaça e nos colocamos imediatamente ao lado dos demais camaradas. A equipe de segurança rastreou seis armados, entre policiais e pistoleiros vestidos como nós, usando nossos símbolos. Denúncia óbvia e antiga do casamento entre o Estado e as elites, no fundo, todos capachos dos interesses do capital e da sua sempre propriedade privada. 

– Isso é afronta ao nosso espaço, não podemos nos esconder – Maria disse. – pega o microfone e denuncia a presença deles. Faz a fala. 

Pensando juntos, achamos melhor não furar a atuação da segurança, colada lado a lado nos pistoleiros. E esperar até que eles controlassem a situação pra falarmos. 

Em algum lugar na multidão, o militante, com todo aquele tamanho de gigante, olhou o policial disfarçado, de cima abaixo, com olhos duros e interpelou: Tá de serviço hoje? 

A equipe de comunicação, fez questão de apontar a câmera para a cara de todos os inimigos confirmados e também dos suspeitos, com a mesma audácia e ameaça com que eles nos filmaram durante toda a semana, nos caçando como animais.

O cara amarelou. Eles amarelaram. Olharam pra cima do palco, muita gente. Os Sem Terra “tavam” sabendo da presença deles e estavam preparados. Gente do Maranhão, gente do Tocantins… Um monte de jovem. Desconversou qualquer coisa, voz baixa. 

Foram embora os seis. De certo, com ódio. 

Nós permanecemos, cinquenta como um corpo único, fortaleza, até o fim do ato. Os cinco dirigentes com a tarefa das falas estratégicas fizeram as denúncias combinadas, com fúria renovada e a coragem de sempre. Improvisamos mais coros provocadores. E no fim, uma saraivada de gritos de guerra. Nos ali, de peito aberto pro perigo, protegendo uns aos outros, resistimos e vencemos o medo. 

Quem não vive na Amazônia não sabe como o perigo nasce e descamba com o sol e vem ainda com a noite, cotidianamente. 

Dançamos depois de vencer a ameaça da morte. Quando a música começou, nós nos procuramos e nos olhamos nos olhos, permitindo sorrisos e abraços. Dança. Amor. Um trago de fumo com um, com outro. Todo mundo se encontrando num “resistimos” de muitas palavras, as equipes contando como nos organizamos nas muitas frentes. Nos vendo de maneira diferente, profunda. Choramos. Bebemos. E nos recriamos. 

Ninguém quis ir embora. Nosso desejo de permanecer juntos fim de tarde e noite a dentro, fez a despedida das delegações amarga. Não faltaram, no entanto, nem os beijos, nem a poesia. 

Se temos medo? Temos. Mas nosso medo nos organiza. Nosso medo é chumbo contra nossos inimigos. 

Nenhum passo atrás, libertação ou morte!