A escalada da violência e da criminalização no meio rural brasileiro

No contexto nacional recente, em que o desmonte do Estado Democrático de Direito avança a passos céleres, enquanto os pobres são designados para pagar a conta da crise econômica

 

Por Giane Ambrósio Álvares*
Para o CBDDH

A violência real e simbólica contra a classe trabalhadora é uma marca perenal da história do Brasil. Mesmo depois da promulgação da Constituição de 1988, quando acreditamos que o reconhecimento de um amplo rol de direitos e garantias nos ajudaria a superar o passado de profundas desigualdades sociais, a luta pela efetivação desses direitos teve como resposta mais violência e repressão.

No contexto nacional recente, em que o desmonte do Estado Democrático de Direito avança a passos céleres, enquanto os pobres são designados para pagar a conta da crise econômica, o Estado brasileiro atua com peculiar avidez e celeridade para ampliar ainda mais as benesses econômicas das elites nacionais e estrangeiras e para sufocar a qualquer custo a luta dos que reivindicam a eficácia de direitos previstos no texto constitucional.

Ao lado da grave crise política, econômica, social e ambiental, vivenciamos o crescimento desenfreado de um Estado policial, com elevados índices de encarceramento da população jovem, negra e pobre e com a intensificação da violência e da criminalização contra aqueles que se insurgem contra o atual estado de coisas.

No meio rural, camponeses, indígenas, quilombolas, movimentos populares e defensores de direitos humanos são vítimas recorrentes da perseguição protagonizada não só pelo Estado, mas também pelos representantes das elites que, ainda hoje, são as detentoras do poder político e econômico, perpetuando nossas raízes escravagistas e antidemocráticas.

Quando o Estado não atua diretamente como protagonista de atos repressivos, defensores de direitos humanos e integrantes de movimentos populares são recorrentemente vitimados pela violência de particulares, com a posterior intervenção do Estado para favorecê-los, partilhando com eles, indiretamente, o monopólio da violência.

Dados reunidos pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) entre 1985 e 2013, apontam que 1678 pessoas foram assassinadas no campo, sendo que, nesse universo, 106 casos foram levados a julgamento e resultaram na condenação criminal de apenas 26 mandantes e 85 executores. Ainda segundo a CPT, somente em 2016 foram assassinadas 61 pessoas em conflitos no campo, o maior número desde 2003. No ano de 2017, a intensificação da violência tornou-se ainda mais grave e evidente.

As elites agrárias brasileiras mais uma vez já não demonstram qualquer pudor e sentem-se autorizadas para ceifar a vida dos pobres do campo. Apenas no mês de abril, quando o Massacre de Eldorado dos Carajás completou 21 anos, nove camponeses foram torturados e assassinados em Colniza, Mato Grosso, em Minas Gerais o trabalhador rural Silvino Nunes Gouveia foi morto com dez tiros na porta de sua casa e em Viana, Maranhão, 13 indígenas foram gravemente feridos pela ação de jagunços contratados por latifundiários.

No dia 24 de maio, enquanto ocorria em Brasília violenta repressão policial contra manifestantes que exigiam eleições diretas e, em São Paulo, numa ação desumana, moradores da região da Cracolândia eram expulsos por ordem das autoridades estaduais e municipais, foi noticiado que, naquela mesma manha, em razão do cumprimento de mandado de reintegração de posse, dez trabalhadores rurais haviam sido assassinados na região da cidade de Redenção, no Pará.

Se é certo que nenhum direito fundamental foi reconhecido ou efetivado sem a luta, o sacrifício e sofrimento dos povos, também é correta a percepção de que, para manter os privilégios das classes dominantes, o sistema penal é invocado para amedrontar, desmobilizar e neutralizar a dissidência política e as reivindicações populares pelo cumprimento das promessas constitucionais.

Nas últimas três décadas, no curso das lutas protagonizadas pelo Movimento Sem Terra em busca do cumprimento do direito constitucional à reforma agrária, a criminalização de seus integrantes foi um dado histórico sempre presente, sendo corriqueira, em todo o país, a instauração de procedimentos criminais, nos quais, de maneira injusta, sem a demonstração de autoria ou materialidade delitiva, trabalhadores se viram privados da liberdade e obrigados a responder a acusações da prática de crimes de formação de bando e quadrilha (atual associação criminosa, art. 288 do Código Penal), esbulho possessório, furto, dano, entre outros, além de alguns casos em que foram acusados da prática de crimes da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983).

No entanto, apesar de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter formado importante jurisprudência no sentido de proteger o exercício de cidadania por parte de trabalhadores rurais sem terra¹, isso não foi suficiente para evitar que muitos delegados, promotores e  juízes continuassem a tratar a questão social como caso de polícia.

Somado a isso, mudanças de entendimento jurisprudencial, como a flexibilização do princípio da presunção de inocência, e a aprovação de novas leis penais e processuais pelo Congresso Nacional, como a Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013) e a Lei que disciplina o terrorismo (Lei nº 13.26 /2016), abriram um ciclo mais grave de autoritarismo penal no país, direcionado não somente a determinada vertente da classe política, mas eminentemente aos pobres e aos movimentos populares.

Quanto à Lei das Organizações Criminosas, quando da discussão da proposta legislativa argumentava-se que seria destinada somente aos grandes criminosos e que não iria atingir as camadas mais pobres. No entanto, apresenta-se hoje como uma nova e poderosa arma contra integrantes dos movimentos populares. No estado de Goiás e no estado do Paraná, trabalhadores rurais vinculados ao MST, em razão direta da luta pela reforma agrária, respondem a processos criminais sob a acusação de prática de diversos crimes, dentre eles o de organização criminosa, inclusive com a decretação de prisões preventivas de diversos militantes.

Além de tudo isso, no Congresso Nacional, a chamada bancada ruralista busca a aprovação de leis que atacam os direitos trabalhistas e previdenciários dos camponeses, promovem a destruição ambiental, acobertam o trabalho escravo e retardam ou impedem a demarcação das terras das comunidades tradicionais e que autorizam a venda de terras para o capital estrangeiro.

Neste ambiente em que a Constituição de 1988 é sistematicamente violada pelos três poderes, o cenário de retrocessos em relação aos direitos humanos no Brasil fica em evidência ainda mais em razão da intensificação da violência, repressão e criminalização dos trabalhadores no meio rural, colocando em grave risco os cidadãos que lutam pela eficácia e garantia de seus direitos.

Nota

[1] HC – CONSTITUCIONAL – HABEAS CORPUS – REFORMA AGRÁRIA – MOVIMENTO SEM TERRA – (…) Movimento popular visando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da cidadania, visando a implantar programa constante da Constituição da República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático. (STJ. HC nº 5.574, relator designado ministro Luiz Vicente Cernicchiaro).

* Giane Ambrósio Álvares é advogada, mestre em processo penal pela PUC/SP, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP) e do Setor de Direitos Humanos do MST.