Por que ainda te invocamos, nosso comandante baiano?

Precisamos assumir as consequências de nossos erros, por maiores que sejam, recolher teus ensinamentos para enfrentar os problemas do presente

“(…) Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor. Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”
Jorge Amado

 

 

Por Igor de Nadai
Da Página do MST

 

Hoje, 4 de novembro, completa-se 49 anos do assassinato de Carlos Marighella pelo regime militar. 

Nascido na Bahia, Marighella foi militante do Partido Comunista, deputado federal, poeta e guerrilheiro. Foi preso e torturado durante o governo de Getúlio Vargas. Com a instauração do Ato Institucional nº5  (AI-5), poderia ter escolhido o caminho de muitos dos seus companheiros, o exílio, mas decidiu resistir e lutar.  

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Já é fim da primavera, mas os ventos que sopram do Sul parecem ainda muito gelados. Passados poucos dias após uma importante batalha na luta de classes brasileira, há uma confusão de sentimentos ente nós, uma mistura de sensação de dever cumprido, de ter feito um bom e belo combate. Quem de nós um dia pensou que nossa geração fosse ter que encarar momentos de golpes com alto nível de sofisticação tecnológica e política, mas ainda combinados com os velhos pijamas e sombras dos gorilas daqueles anos de trevas e chumbo que não vivemos?

De certo, meu comandante, você ficaria orgulhoso do que fizemos nestes últimos meses. Fomos de maloca em maloca, de porta em porta, por entre becos, vielas e alagados. Você com certeza estaria entre nós em lindas rodas de samba pela democracia, minha imaginação me permite pensar que pelo seu tipo, você estaria ali no tantan, dando o ritmo de nosso compasso, como você sempre fez na vida. De certo, como poeta que foi desde menino, estaria admirado com as lindas composições e poesias que tantos artistas populares fizeram pela democracia, contra o fascismo e a intolerância.

Com certeza, estaria perdido no meio de multidões de mulheres lutando contra o fascismo em cada canto do Brasil junto às companheiras Clara , Zilda e tantas outras combatentes de ombro à ombro. Contudo, perdemos esta batalha, o que fizemos, não foi suficiente. Como você mesmo nos ensinou, é preciso admitir as derrotas, não nos enganemos nem abaixemos a cabeça, a verdade é sempre revolucionária. É hora sim de chorar, de nos abraçarmos, de rever os planos de batalha e de nos prepararmos para o que virá.

Por isso comandante, te invocamos!

Te invocamos pela necessidade de ler o momento corretamente, de enxergar a realidade como ela é e não como desejamos que ela fosse. Como teórico coerente que foi com a prática, seguindo a máxima leninista de que: “sem revolucionário, não há movimento revolucionário”: precisamos aprender novamente com o exemplo do intelectual que pensa a revolução.

Te invocamos pela agitação e propaganda tão necessária neste momento que precisamos de educação e politização das massas! Que bonito é ver teu nome e tua história brotando ano a ano em filmes, documentários, muros, raps, musicas, baterias de samba, até mesmo em torcidas organizadas de futebol! Contudo, ainda fazemos muito pouco, como nos orientou no passado: “é preciso ação e mais ação. Distribuir manifestos, pichar
muros, sabotar, fazer política de terra arrasada!”.

Te invocamos pelo necessário e permanente trabalho com os jovens, tão afetados pelo ceticismo, pelo isolamento e pela confusão de uma geração que nunca viveu um grande levante de massas, contudo, demonstraram inúmeras vezes já carregar em suas mãos a responsabilidade e a brasa para incendiar os velhos entulhos e para dar lugar ao novo, sempre retirando energias e lições do passado para dar continuidade às batalhas travadas pelos nossos antepassados. Lembro-me sempre que escreveu, tendo ao seu redor companheiros e companheiras muito jovens, que: “precisamos trabalhar os jovens”.

 

Ou melhor: precisamos trabalhar com os jovens. É preciso dar oportunidades aos jovens e responsabilizá-los com problemas que só a juventude pode resolver. Tragam jovens para a ação. Precisamos de gente jovem para viajar e aprender. Quando voltarem, pouco a pouco, irão cuidando de tudo, queiramos ou não.

Te invocamos pela poesia, te invocamos pelo futebol e pelo samba. Porque você nos ensinou que a revolução brasileira será com futebol, samba, carnaval, será colorida, mulata como sua cor. Precisamos mais do que nunca de suas poesias, feitas ainda sob grades e porões de diferentes períodos, feitas em aparelhos e esconderijos de diferentes cantos do Brasil. Como disse teu contemporâneo guerrilheiro argentino, “esses filhos da puta não suportam poesia!” , não nos amedrontarmos nem nos embrutecermos, afinal: “é preciso não ter medo, é preciso ter a coragem de dizer!”

Te invocamos pelo povo negro, pelo povo nordestino, pelo povo pobre. Você, como mesmo se definiu “apenas um mulato baiano”, soube bem o que é ser um negro nordestino no Brasil. Vivemos hoje num Brasil que mata diariamente os negros e pobres, incendeiam vidas e sonhos a torto e a direito, onde os ricos, velhos e branquelos mandam como se ainda estivéssemos no tempo da casa grande e senzala. Te invocamos porque o Brasil precisa mais do que nunca da voz e da resistência do povo negro, do povo pobre, assim como sintetizou o bonito recado que dá a escola de samba Mangueira: “chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles e Malês!”

Por fim, te invocamos pela força da coerência de seus atos, por dizer o que faz e ter feito o que falou. Te invocamos como parte da paciente e complexa tarefa da tão sonhada revolução brasileira, a qual você entregou cada dia de sua vida. Precisamos assumir as consequências de nossos erros, por maiores que sejam, recolher teus ensinamentos para enfrentar os problemas do presente e conferir um novo sentido a sua luta no passado. Por fim, decretamos em coro com o poeta Jorge Amado: “retiramos da maldição e do silêncio e aqui inscrevemos seu nome de baiano: Carlos Marighella!”