“Depois de sobrevivermos a 450 anos de escravidão, não cabemos em apenas 30 dias”

Em entrevista, o mestre em sociologia e membro do Ineg, Leandro Rosa, fala sobre sobre os desafios do movimento negro na atual conjuntura

 

Por Gustavo Marinho
Da Página do MST

O mês de novembro, pela passagem do dia da Consciência Negra, 20 de novembro, marca uma série de atividades em memória à resistência e luta negra do Quilombo dos Palmares. Seu legado e sua história inspiram ainda hoje a luta contra a opressão e pelos direitos do povo negro no Brasil e no mundo.

 

Em entrevista para a Página do MST, Leandro Rosa, militante negro, reafirmou a necessidade de demarcar o 20 de novembro em todos os dias do ano na luta e na resistência negra no país para avançar no próximo período.

“A maior lição do 20 de novembro é mostrar que existimos (…) e que depois  de sobrevivermos a 450 anos de escravização, não cabemos em apenas 30 dias”, comentou Rosa durante a entrevista.

Mestre em sociologia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro do Instituto Negro de Alagoas (Ineg), Leandro Rosa comentou também sobre os desafios do movimento negro na atual conjuntura, as tarefas que se apontam para o próximo período e da importância do fortalecimento da organização e da luta do povo negro.

Acompanhe a entrevista na íntegra:

 

Diversas declarações de Jair Bolsonaro, antes e durante a campanha eleitoral, demarcaram um discurso odioso, preconceituoso e racista. De que modo você avalia que essas declarações influenciaram no processo eleitoral?

 

Leandro Rosa.png
Leandro Rosa Mestre em sociologia pela Unesp e membro do Ineg 

A resposta a esta questão não tem a pretensão de ser a definitiva ou a correta, mas respeitando a complexidade em que vivemos, é que as declarações raciais, misóginas, homofóbicas, foram, para além de um posicionamento pessoal, usadas para retirar destes mesmos temas a discussão política, nos levaram para o campo da moral, do certo ou errado, alimentando ódios latentes e que se misturaram, ao já presente preconceito racial brasileiro, mas também a um discurso moralista que não permitia o convencimento.

O impacto, ao meu ver, foi que o tipo de discussão proposta, escondeu outras discussões mais importantes, como por exemplo, a existência ou não de políticas do candidato com esses recortes e o seu real posicionamento quanto a sua importância. Infelizmente, nossos preconceitos foram manipulados de forma que ficássemos encalacrados entre o bem e o mal, num maniqueísmo empobrecedor, que com o anonimato e a distância proporcionada pelas redes sociais, somada a fatídica “facada”, a falta de debates de fato, a “leitura” informacional de fakes e memes, bem como a demonização da esquerda encarnada no Partido dos Trabalhadores, incluindo o MST e o MTST, dando ao então candidato saídas “fáceis” para problemas complexos, tipo: “temos/iremos resolver isso daí!”.

Na questão racial em particular a fala do candidato eleito se adequou às falácias já superadas no âmbito do debate racial, mas que ainda estão muito presentes no seio do senso comum, como por exemplo, a afirmação corriqueira de que todos somos iguais independente de raça, quando na verdade, sabemos bem que a população negra brasileira convive com problemas que só ela tem sofrido ao longo de séculos.

Do ponto de vista da luta e das conquistas para a população negra no Brasil, como você enxerga os impactos da vitória de Bolsonaro?

Enxergo que uma vitória do campo democrático popular traria para o tema uma continuidade de políticas públicas em andamento ou em consolidação, com perspectivas de expansão mais nítidas. A vitória da ultra-direita faz acender um alarme no sentido de como trabalharemos no campo político para a preservação dos direitos e políticas já conquistadas.

Destaco que a construção de políticas públicas com recorte étnico no Brasil tem uma característica muito peculiar: ela é difícil seja qual for o partido no poder. O racismo à brasileira, o mito da democracia racial, nos impõe tarefas que, muitas vezes, estão para além dos campos da esquerda e direita. Devemos continuar o debate, continuar a nossa jornada de conscientização e, obviamente, nesse novo cenário, mais árido, que se abre, nos ater com inteligência ao fortalecimento de parcerias, para que não haja regressão.

De que maneira você avalia que o mês de novembro, na passagem do dia 20, deixa lições para o povo negro no que diz respeito aos desafios do atual momento?

O 20 de novembro sem dúvida é uma das datas mais importantes do calendário, sem esquecer o 21 de março, ou mesmo o 13 de maio, entre outras, mas no meu entendimento, se quisermos de fato alterar as relações étnicas nesse país, ainda mais no cenário que se abre, é fazer todos os dias serem 20 de novembro.

Sei que é uma tarefa hercúlea, sei também que devemos fazer o melhor dentro da &”39;vitrine&”39; que a data nos dá, mas teremos que ser mais criativos para escapar da armadilha de &”39;só existirmos em novembro!&”39;

Acho que a maior lição do 20 de novembro, assim como das outras datas correlatas, é mostrar que existimos, é mostrar que também construímos a formação sócio-política desse país, e que depois de sobrevivermos a 450 anos de escravização, não cabemos em apenas 30 dias.

O movimento negro em todo o país foi responsável por uma série de conquistas e avanços para os negros e negras no Brasil. Hoje o cenário político apresenta um cenário de ameaça e criminalização das organizações sociais e populares, o que você levantaria como as principais tarefas e desafios para a organização do povo negro no país?

Não posso dizer que o cenário de hoje é uma ameaça o cenário político e social sempre nos foi adverso. Pode piorar no próximo governo, mas acredito que a organização, a ampliação da discussão, a utilização de parcerias dentro e fora dos movimentos sociais, nos planos regionais, nacional e internacional, são o melhor caminho para continuar o nosso debate.

Mantendo o que já foi conquistado, ampliando se possível, mas principalmente, não perdendo um direito sequer dos quais foram consolidados. Não há fórmula mágica do “a gente resolvei isso daí”, a questão étnica nesse país é complexa, mas também é humana, devendo ser inclusiva, devendo ser sempre multidisciplinar. Obviamente que a questão jurídica deve ser vista com muita cautela, pois a criminalização dos movimentos sociais podem abrir fendas consideráveis nas atuações. O que nos resta é estarmos solidários, crer nas instituições democráticas que existem, mas não esmorecer e estarmos atentos às novas legislações e o pior, as novas interpretações dadas a leis já existentes.  

A postura que teremos a partir do novo governo é a mesma que temos tido nos demais, mantendo nossa luta em torno da promoção socioeconômica da população negra brasileira.